12/03/2012

Janjão Garcia: o rei das guloseimas


Se um dia o cidadão João Luiz Garcia de Souza perder seu iPhone, quem encontrar o aparelho e tentar descobrir alguma coisa a respeito do proprietário através das fotos vai levar um susto: o homem só pensa naquilo! Família, vistas bonitas, animais de estimação? Que nada: são centenas de fotos... de comida. Há produtos em estado bruto, pratos prontos em restaurantes, detalhes dos ditos restaurantes, garrafas, copos, listas de preços em botequins. As fotos mais recentes, e mais tristes, mostram duas caixas detonadas pelos “carinhos” da Azul, que as transportava de Minas para o Rio. Dentro, montes de queijos estragados.

-- Está vendo só? – diz Janjão, desconsolado. – Chama-se a isso “custo Brasil”. Eu tenho clientes e produtos, mas fazer os produtos chegarem às mãos dos clientes é que são elas. A logística é um pesadelo.

Mais tarde, na Casa Carandaí, delicatessen que acaba de montar na Lopes Quintas para promover o sonhado encontro entre clientes e produtos, ele me mostra uma geladeira meio vazia: era para lá que se destinava a preciosa carga de queijos da Serra da Canastra. O resto da casa, porém, está bem estocado, e com muita coisa feita lá mesmo, de doces pecaminosos a terrines de dar água na boca, passando por pães e baguetes que só faltam falar francês.

Apesar do sotaque, a idéia da Casa Carandaí é servir de vitrine para a excelência dos produtos brasileiros. Para fazer a seleção que compõe o elenco do empório, Janjão viajou pelo país inteiro, selecionando com grande rigor a produção local. Para que ninguém caia no grave erro de achar, por exemplo, que todas as goiabadas são iguais, lá está a prova de que a do Rio Grande do Sul é bem diferente da carioca ou da mineira. Dentro em breve, assim que o pátio da casa for convertido em café, a prova poderá ser feita in loco – e aí ninguém precisará mais ter saudades do Garcia e Rodrigues, que Janjão idealizou em 1996, abriu com alguns sócios em 1997 e largou em 2000, “saído” depois de uma série de desentendimentos. A próxima etapa gastronômica da sua vida, a rede Fiametta, também terminou em brigas e recriminações, mas hoje ele confessa que a casa foi criada para dar dinheiro, e não prazer. Janjão gosta demais de comida para se contentar com uma pizzaria. Agora, leva a vida que pediu a Deus: tem apenas um restaurante, o Lorenzo Bistrô, também na Lopes Quintas, a dois passos da Carandaí, e sua única sócia é a mulher Nick. Essa, aliás, é uma outra história – uma história de amor, que a gente conta mais adiante.

o O o

Tanto a Carandaí quanto o Lorenzo trazem, nos letreiros, uma marquinha novidadeira: um RJ cercado por um círculo, que significa que são casas cariocas, orgulhosas da sua cidade. De onde veio isso? De uma campanha que o governo do estado iniciou mas, para variar, não levou em frente. A idéia era lançar um selo, como os que existem em tantos países e cidades europeus, que os cidadãos colam nos carros, nas bicicletas e nas vitrines, demonstrando a sua, digamos, auto-estima geográfica. Janjão gostou tanto que adotou a prática imediatamente; mas, por enquanto, é uma marquinha solitária no mundo:

-- Ninguém mais adotou o selo, não é uma pena? A gente precisava transformar isso numa espécie de “By Appointment” carioca.

Miguel Paiva, que desenhou as logomarcas, não ficou muito feliz em acrescentar o selinho ao seu trabalho; mas o RJ não atrapalhou em nada, ficou bonitinho e, por enquanto, misterioso. Vá que a idéia pegue...

Típico carioca da Zona Sul, Janjão, hoje com 58 anos, sempre aproveitou o que a cidade tem de melhor, e ama o Rio fervorosamente. Aluno do Santo Inácio, praieiro e esportista convicto, cresceu entre os políticos e intelectuais que freqüentavam a casa de seus pais, o advogado Pedro Garcia de Souza e Ana Maria Machado Bittencourt, uma dona de casa sempre às voltas com galerias e artes plásticas; o Clube da Lanterna, que mais tarde daria origem à UDN, nasceu na sala da sua avó. Lacerdistas e juscelinistas, que se enfrentavam nas tribunas e nos jornais, se encontravam pelas esquinas da cultura e, eventualmente, seus filhos até acabavam se casando. Tendo acompanhado esse movimento de perto, Janjão conhece, como poucos, a árvore genealógica do Rio. Por insistência dos pais, cursou Direito. Economia, que era o queria, era considerada “exatas” demais naquele lar de “humanas”.

-- Eu era bom de matemática. Eu lia, estudava e fazia esporte. Nós morávamos na Prudente de Moraes, a praia era logo ali, as ondas, o frescobol, a turma da música... Mas era bom aluno, me concentrava nas aulas. Felizmente, ou infelizmente, só virei namorador depois que casei, coisa que, por sinal, deu muita confusão.

A vontade de fazer Economia não passou, contudo, e ele acabou fazendo as duas faculdades ao mesmo tempo: Direito na PUC, e Economia na Candido Mendes, em Ipanema. Logo conseguiu um estágio na Consultec – mas entre uma coisa e outra estava, sem perceber, se preparando para um futuro na gastronomia.

-- Nós íamos, um bando de garotos, surfar em Saquarema, onde não havia nada. E quem é que ia cozinhar? Acabava sobrando para mim, porque eu sempre gostei de cozinha. Mais tarde me chamaram para ser cozinheiro em regatas. Eu sabia velejar e não enjoava, dois requisitos mais importantes até do que os predicados culinários...

Havia também as famosas festas de carnaval que a família promovia em Petrópolis, e que chegavam a reunir mais de mil pessoas. Janjão participava até uma certa altura, depois ia dormir longe de casa, para poder descansar. Quando reaparecia de manhã, o jardim estava coalhado de gente que tinha caído por lá mesmo, e que se embrulhava nas toalhas de mesa.

-- Parecia um campo de batalha coalhado de cadáveres! – ri. – E eram sempre os mesmos cadáveres... Eu entrava e minha mãe me pedia para preparar ovos mexidos para a tropa. Eu ganhava um trocado com isso. Quando ia saindo para o tênis, nova leva de defuntos acordava das profundezas e pedia alguma coisa para comer. Lá ia eu para a cozinha novamente, para fazer mais ovo mexido...

o O o

Saindo da Consultec, Janjão foi para a Nutrícia, uma indústria de alimentação. Trabalhava como economista, em planejamento e estratégia, mas, ainda assim, passou a ter contato intenso com a área de alimentos. Fez um estágio na Kraft, freqüentava congressos de nutrição no mundo todo e, claro, encontrava muita comida interessante pelo caminho. Uma vez participou de uma reunião com Paul Bocuse, entenderam-se às mil maravilhas e, ato contínuo, estava em Lyon, como convidado do estreladíssimo chef. Durante as horas livres nas viagens, corria atrás de bons vinhos, de produtos exóticos, de temperos especiais.

Como tantas outras empresas, a Nutrícia acabou no governo Collor. Janjão foi trabalhar na conversão de velhas fábricas desativadas em shopping centers mas, passado algum tempo, decidiu que era hora de realizar seu sonho: um misto de bistrô, délicatessen e loja de produtos para cozinha, algo jamais visto na cidade. O pai ficou no auge da indignação: “Então você recebe uma educação de alto nível e agora vai trabalhar num balcão?! Você vai servir os seus amigos?!”

-- Ele nunca se conformou com a minha opção, -- lamenta Janjão. – Morreu sem ter posto os pés no Garcia e Rodrigues. Mas eu estava cansado de trabalhar só por trabalhar, estava cansado de ter de lidar com a burocracia do governo, com a corrupção geral... Queria trabalhar em alguma coisa que me desse prazer, queria um trabalho que me entusiasmasse, onde eu não sentisse as horas passarem.

O passo foi maior do que a perna, a situação entre os sócios ficou insustentável e o sonho acabou. Durante a fase Fiametta, foi chamado pelo supermercado Zona Sul para repensar as lojas, e criou as simpáticas pizzarias que quebram o galho de tantos cariocas esfomeados na hora das compras.

Um dia, Nick Barcellos, dona de um restaurante no Jardim Botânico chamado Lulu pediu uma consultoria. O restaurante estava mal das pernas, e ela queria saber o que fazer: vender, fechar, reformar? Entre uma sugestão aqui e um conselho ali, os dois se apaixonaram. Janjão comprou o restaurante, casou-se com Nick e foi feliz para sempre – ou, pelo menos, até este mês de março de 2012, em que ambos curtem, como se fosse uma nova criança, a Carandaí, montada numa antiga casa tombada, que estava caindo aos pedaços. Janjão vendeu o único apartamento, para desespero dos filhos João Pedro (32) e Mariana (31), e foi à luta.

Conversamos no Lorenzo Bistrô e, no fim da entrevista, fomos ver o novo empório. Ganhei uma baguete recém-saida do forno. No táxi, beliscando aquela delícia, cheguei à conclusão de que Janjão agiu muito bem. Apartamento próprio um monte de gente tem, mas um parque de maravilhas como aquele é único.

(O Globo, Rio, 11.3.2012)