30/01/2013

Vivaldi Concertos for the Recorder


VIVALDI Concertos for the recorder: RV 312R, 428, 433, 439, 441, 443 Sébastien Marq (rcr); Jean-Christophe Spinosi (cond); Ens. Matheus (J.- C. Spinosi, F. Paugam, E. Curial, M. Dupuy,  vn; L. Paugam, M. Haudidier, va; P. Warnier, vc; Th. Runarvot, db; H. Clerc-Murgier, hpd; M. Buraglia, theorbo), (period instruments)  OPUS 111 OP 30371 (50:39)

Jaded reviewers rarely expect to be surprised by any new performance of a piece they already know. Much less if that piece is by Vivaldi, a composer who, some say, repeated himself to exhaustion. But this recording is a shock to the ears. Is that a quality or a defect? Now that depends, dear reader, entirely on you.

Sébastien Marq is a fabulous recorder player, with the flashiest technique. He can move his fingers faster than you can think – and that is very, very fast. The ensemble Matheus is brilliantly equipped to follow him into the wilderness. Together, they present a most original version of these familiar works. So original, in fact, that they become totally unfamiliar, almost schizoid.

What they do is simply to exaggerate every single item in the musical menu: “allegro” is thus “bursting with excitement”; “presto” means “as fast as humanly possible”, or sometimes faster; “largo” translates as ”so slow that one can hardly bear it”. Staccatos are truly short and pointed. Contrasting dynamics are worlds apart. Tempo inflections are abundant.  Rests are silences of such intensity that one is afraid to breathe. Fermatas are held forever. All gestures are intensified and charged with dramaticism.

How does all of this sound? A bit confusing, at first. It is hard to get some of the melodic lines, either because the notes happen in such quick succession that it is impossible to follow them or because, on the contrary, phrases are so stretched out that one loses the sense of direction altogether. So if you never heard these works, this might not be your best introduction to them. But if, like me, you have heard them a hundred times, this is a fascinating exercice in imagination, and it is carried through with bravado.

These musicians spent a long time thinking about these works, and these ideas, no matter how odd, are clearly and lovingly displayed. All involved with this recording are accomplished musicians. They perform with uncommon energy and passion, while at the same time they seem to question every single convention that others have always taken for granted. They are not afraid to be extravagant, even weird. It does not always work, since at times the interpretation is so frantic that it borders on the insane: like a 33’ RPM long-play mistakenly heard at 45’RPM. Slow movements feel sometimes like 20th century compositions – very experimental and disconnected. A 45’ RPM disc mistakenly played at 33 RPM.  After a few listenings, however, it is entertaining to disentangle themes and finally make sense of this flood of furious sound. And in the end it makes beautiful sense.

After all, Vivaldi was undoubtedly a man interested in new experiences. And the liberties taken by Marq and friends are not random, but rather based on the descriptive character of these works. Thus, the very slow movement, the one which is most unnervingly prolonged, fittingly called “Il sonno”, is a perfect musical representation of the drowsiness that precedes sleep. “Il Gardellino” has uneven, crazy out-of-tune little bird-calls – just right for a concerto depicting a nightingale. The fact is, overall, this is playing that has soul and guts. To me, it sounds refreshing, bold. And intriguing as well.

This is the sort of CD you will either love or hate with equal intensity. If you normally do not like excessive liberty with the score, if Harnoncourt’s interpretations sound too extreme to you, you will probably be offended by this one. In that case, a more traditional view of these works (such as Dorothée Oberlinger’s, for Marc Aurel LC 572) would be a wiser choice. But if you are in a truly adventurous frame of mind, if you already have many versions of the Vivaldi recorder concerti, and you are looking for one that will have something new to say about them, this CD is a must-have. 

(Laura Rónai)

08/04/2012

Antonia Leite Barbosa
Uma carioca de utilidade pública



Um dia, Antonia Leite Barbosa estava na fila do caixa no supermercado quando viu que a cliente à sua frente punha quilos de farinha de trigo na esteira, seguidos de incontáveis pacotes de manteiga. Não resistiu, e perguntou o que a moça pretendia fazer com aquilo tudo. A resposta? Bolos, naturalmente. Nascia assim mais uma indicação da “Agenda carioca”, referência de todo mundo que sabe das coisas -- e quer saber ainda mais.

Tudo começou quando amigos de fora vieram ao Rio e pediram dicas sobre a cidade. Antonia anotou o que lhe parecia essencial; mas, incapaz de fazer as coisas pelo meio, quando deu por si tinha um livro praticamente pronto. Orgulhosa do resultado, decidiu ampliar o conteúdo. O passo seguinte foi procurar uma editora. O resto é história, mais exatamente a história do Rio, contada através das suas lojas e dos seus prestadores de serviços, das grandes obras às miudezas impossíveis.

“A ‘Agenda carioca’ é o meu GPS cool do que há de melhor e mais delicioso no Rio” – diz Bruno Astuto na contracapa. –“Foi-se o tempo em que ligávamos para os amigos para descobrir os endereços ou quem é quem na cidade. Antonia juntou tudo numa espécie de bíblia com jeito de caldeira fervente. ”

Mais velha de três irmãos, carinha de menina apesar dos 34 anos, Antonia aparece para a entrevista com a mais carioca das roupas: short, camisetinha chique e uma sandália de corda para lá de estilosa. Difícil acreditar que já é mãe, mas Felipe, do alto dos seus cinco rechonchudos meses, está aí para provar que milagres existem.

Ela tinha tudo para ser jornalista mas, por um desses desvios de juventude tão comuns, formou-se em desenho industrial. A verdadeira vocação, porém, não demorou a se manifestar e, no ano 2000, ainda na faculdade, fundou, com as amigas Mariana Salim e Joana Almeida Braga, a revista Geração. A vida da revista foi curta – apenas dois anos – mas o elenco de colaboradores era o que havia de melhor: Bruno Mazzeo, Cynthia Howlett, Pedro Garrido...

-- Todo mundo escrevia por amor, -- lembra Antonia. – Um dia fomos ao Jornal do Brasil propor que a encartassem no jornal como um produto jovem. O Boechat, então editor chefe, adorou a idéia. A experiência valeu, mas não trouxe o retorno comercial que esperavamos para manter a revista.

“Geração” virou coluna, assinada por Antonia e Joana. Em 2003, Joana casou, foi para Miami e Antonia ficou sozinha no leme. A coluna passou a se chamar “Antonia”, durou mais sete anos e pos a autora na trilha dos bons achados, das festas bacanas que ninguém conhecia, dos segredos escondidos pela cidade. Ao longo desse tempo, surgiram outras oportunidades de trabalho. Sempre que alguém pensava em “carioca, jovem, descolada” ligava para Antonia. Ela foi “descoberta” por Luciano Huck e acabou na Rádio Paradiso, dando dicas para os ouvintes duas vezes por dia; depois foi para a Oi FM, onde ficou até o fim da emissora.

-- O resultado disso tudo é que acabei acumulando um bom conhecimento da cidade. E quando aqueles meus amigos de fora me pediram uma lista de dicas do Rio, percebi que tinha material para um livro. Mas eu queria fazer um guia pessoal para quem mora aqui, sem a obrigatoriedade de listar todos os museus e pontos turísticos. O Addresses já existia, mas seguia uma linha bastante diferente: ele é uma espécie de páginas amarelas chique. A minha primeira “Agenda carioca”, por exemplo, não trazia nem o Redentor nem o Pão de Açúcar. A idéia era fugir de tudo o que fosse clichê.

Publicada desde 2006 pela Editora Senac, a “Agenda carioca” tem cara de livro, mas é comercializada como revista, com alguns anúncios entre as páginas. Essa foi a fórmula encontrada por Antonia e pelos editores para viabilizar o projeto.

-- A primeira pessoa para quem levei a idéia foi o Marcelo Bastos, da Farm, que já queria que eu saísse de lá com um cheque na mão, -- lembra Antonia. – Eu estava num mês horrível, não tinha dinheiro nem para o aluguel, e fiquei muito emocionada, “Meu Deus, alguém acreditou em mim!” Outro apoio determinante foi o do Sergio Pessoa, do Rio Sul.

As primeiras edições da “Agenda carioca” tinham um detalhe muito charmoso: vinham com uma mini havaiana pendurada na lombada em espiral. Mais uma vez, puro acaso. Antonia estava com um bowl cheio de chaveirinhos de havaianas em casa, sobras de uma decoração natalina, e assim como quem não quer nada, pendurou um deles no exemplar de prova. Ficou tão engraçadinho que, no dia seguinte, ela saiu a campo para convencer os fabricantes a se associarem ao projeto. A tradição da chinelinha pendurada só foi rompida na última edição, de 2010, quando a agenda passou por uma repaginada radical e dividiu-se em cinco livrinhos reunidos num estojo.

Vale abrir um parênteses aqui para observar que a elaboração e edição de ótimos guias e agendas é um mal – melhor dizendo, um bem – de família: Katia Mindlin Leite Barbosa, mãe de Antonia, fez, junto com Dalal Achcar, um fascinante guia de viagens e de compras na Turquia. Graças a ele, as duas foram alçadas à categoria de consultoras de Glória Perez, cuja próxima novela, “Salve Jorge”, se passa lá.

A agenda da Antonia é tão deliciosamente pessoal que, através dela, é possível traçar a trajetória da autora. Quando se casou com o economista Joaquim Saboia, as dicas de decoração e de serviços de casa ganharam muitos acréscimos. Quando teve seu primeiro cachorro, os cães foram contemplados com destaque – e com uma reclamação minha, que queria isonomia para os gatos. Com o nascimento de Felipe, Antonia já tem tantas dicas para mães e bebês que vai lançar uma edição especial, a “Agendinha carioca”.

Como Antonia é realmente antenada, a “Agenda carioca” existe em formato digital há tempos – na verdade, desde a primeira edição. Naquela época, “formato digital” era sinônimo de Palm e, graças a Hands, muitos usuários puderam dispensar as edições em papel. Hoje ela é um app gratuito para iPad. A grande novidade é que há uma versão para inglês saindo do forno, e que estará prontinha para consumo na Rio +20.

A grande novidade na vida da Antonia e da sua agenda, porém, é a versão para Facebook. O grupo, que se chama “Agenda carioca”, está bombando. É ponto de convergência para quem precisa de dicas e para quem descobriu algo maravilhoso e quer compartilhar.

-- A agenda no Facebook nem depende mais de mim, -- observa Antonia. – Ela é autosustentável, já reúne mais de cinco mil pessoas e estou descobrindo um monte de coisas que eu mesma não conhecia. Isso está facilitando demais a pesquisa para a próxima edição. Mas o que mais me encanta é o espírito de solidariedade das pessoas, a generosidade que todos demonstram em compartilhar os seus endereços secretos.

Gerenciar um grupo tão grande tem seus percalços, que aos poucos ela começa a descobrir. É preciso cuidar muito bem da lista para que não vire uma agência de empregos, um varal de publicidade, uma lata de spam. O preço da qualidade é a eterna vigilância.
Outro projeto que empolga Antonia é a marca RJ, criada pelo governo do estado como uma espécie de “I love NY” carioca, para refletir o momento do Rio.

-- O Sérgio Cabral entendeu que precisava fazer uma campanha que fosse muito além de realizações e de obras, uma campanha que tocasse no orgulho e na auto-estima de quem vive aqui. Uma campanha de posse, de pertencimento: “Eu pertenço a esse lugar”. Essa campanha foi pensada em cima de sete pontos fundamentais: alegria, estilo, beleza, inovação, energia, paixão, paz. Há cinco anos, nós não poderíamos nem pensar em falar em paz; hoje isso começa a ser possível. O RJ vem como um selo do qual as pessoas podem se apropriar. Há alguns filmes muitos bonitos no site do projeto, em novoRJ.com.br. Existem movimentos parecidos no mundo, que começaram com um empurrãozinho do governo, mas que foram logo apropriados pela população. A idéia do RJ é essa, é ser a marca do Rio. Gostei tanto da idéia que topei participar quando meu filho estava só com três meses. Acho que, mais para a frente, quando eu olhar para trás, vou poder dizer “Caramba, eu ajudei a criar isso!”.


(O Globo, Rio, 8.4.2012)

12/03/2012

Janjão Garcia: o rei das guloseimas


Se um dia o cidadão João Luiz Garcia de Souza perder seu iPhone, quem encontrar o aparelho e tentar descobrir alguma coisa a respeito do proprietário através das fotos vai levar um susto: o homem só pensa naquilo! Família, vistas bonitas, animais de estimação? Que nada: são centenas de fotos... de comida. Há produtos em estado bruto, pratos prontos em restaurantes, detalhes dos ditos restaurantes, garrafas, copos, listas de preços em botequins. As fotos mais recentes, e mais tristes, mostram duas caixas detonadas pelos “carinhos” da Azul, que as transportava de Minas para o Rio. Dentro, montes de queijos estragados.

-- Está vendo só? – diz Janjão, desconsolado. – Chama-se a isso “custo Brasil”. Eu tenho clientes e produtos, mas fazer os produtos chegarem às mãos dos clientes é que são elas. A logística é um pesadelo.

Mais tarde, na Casa Carandaí, delicatessen que acaba de montar na Lopes Quintas para promover o sonhado encontro entre clientes e produtos, ele me mostra uma geladeira meio vazia: era para lá que se destinava a preciosa carga de queijos da Serra da Canastra. O resto da casa, porém, está bem estocado, e com muita coisa feita lá mesmo, de doces pecaminosos a terrines de dar água na boca, passando por pães e baguetes que só faltam falar francês.

Apesar do sotaque, a idéia da Casa Carandaí é servir de vitrine para a excelência dos produtos brasileiros. Para fazer a seleção que compõe o elenco do empório, Janjão viajou pelo país inteiro, selecionando com grande rigor a produção local. Para que ninguém caia no grave erro de achar, por exemplo, que todas as goiabadas são iguais, lá está a prova de que a do Rio Grande do Sul é bem diferente da carioca ou da mineira. Dentro em breve, assim que o pátio da casa for convertido em café, a prova poderá ser feita in loco – e aí ninguém precisará mais ter saudades do Garcia e Rodrigues, que Janjão idealizou em 1996, abriu com alguns sócios em 1997 e largou em 2000, “saído” depois de uma série de desentendimentos. A próxima etapa gastronômica da sua vida, a rede Fiametta, também terminou em brigas e recriminações, mas hoje ele confessa que a casa foi criada para dar dinheiro, e não prazer. Janjão gosta demais de comida para se contentar com uma pizzaria. Agora, leva a vida que pediu a Deus: tem apenas um restaurante, o Lorenzo Bistrô, também na Lopes Quintas, a dois passos da Carandaí, e sua única sócia é a mulher Nick. Essa, aliás, é uma outra história – uma história de amor, que a gente conta mais adiante.

o O o

Tanto a Carandaí quanto o Lorenzo trazem, nos letreiros, uma marquinha novidadeira: um RJ cercado por um círculo, que significa que são casas cariocas, orgulhosas da sua cidade. De onde veio isso? De uma campanha que o governo do estado iniciou mas, para variar, não levou em frente. A idéia era lançar um selo, como os que existem em tantos países e cidades europeus, que os cidadãos colam nos carros, nas bicicletas e nas vitrines, demonstrando a sua, digamos, auto-estima geográfica. Janjão gostou tanto que adotou a prática imediatamente; mas, por enquanto, é uma marquinha solitária no mundo:

-- Ninguém mais adotou o selo, não é uma pena? A gente precisava transformar isso numa espécie de “By Appointment” carioca.

Miguel Paiva, que desenhou as logomarcas, não ficou muito feliz em acrescentar o selinho ao seu trabalho; mas o RJ não atrapalhou em nada, ficou bonitinho e, por enquanto, misterioso. Vá que a idéia pegue...

Típico carioca da Zona Sul, Janjão, hoje com 58 anos, sempre aproveitou o que a cidade tem de melhor, e ama o Rio fervorosamente. Aluno do Santo Inácio, praieiro e esportista convicto, cresceu entre os políticos e intelectuais que freqüentavam a casa de seus pais, o advogado Pedro Garcia de Souza e Ana Maria Machado Bittencourt, uma dona de casa sempre às voltas com galerias e artes plásticas; o Clube da Lanterna, que mais tarde daria origem à UDN, nasceu na sala da sua avó. Lacerdistas e juscelinistas, que se enfrentavam nas tribunas e nos jornais, se encontravam pelas esquinas da cultura e, eventualmente, seus filhos até acabavam se casando. Tendo acompanhado esse movimento de perto, Janjão conhece, como poucos, a árvore genealógica do Rio. Por insistência dos pais, cursou Direito. Economia, que era o queria, era considerada “exatas” demais naquele lar de “humanas”.

-- Eu era bom de matemática. Eu lia, estudava e fazia esporte. Nós morávamos na Prudente de Moraes, a praia era logo ali, as ondas, o frescobol, a turma da música... Mas era bom aluno, me concentrava nas aulas. Felizmente, ou infelizmente, só virei namorador depois que casei, coisa que, por sinal, deu muita confusão.

A vontade de fazer Economia não passou, contudo, e ele acabou fazendo as duas faculdades ao mesmo tempo: Direito na PUC, e Economia na Candido Mendes, em Ipanema. Logo conseguiu um estágio na Consultec – mas entre uma coisa e outra estava, sem perceber, se preparando para um futuro na gastronomia.

-- Nós íamos, um bando de garotos, surfar em Saquarema, onde não havia nada. E quem é que ia cozinhar? Acabava sobrando para mim, porque eu sempre gostei de cozinha. Mais tarde me chamaram para ser cozinheiro em regatas. Eu sabia velejar e não enjoava, dois requisitos mais importantes até do que os predicados culinários...

Havia também as famosas festas de carnaval que a família promovia em Petrópolis, e que chegavam a reunir mais de mil pessoas. Janjão participava até uma certa altura, depois ia dormir longe de casa, para poder descansar. Quando reaparecia de manhã, o jardim estava coalhado de gente que tinha caído por lá mesmo, e que se embrulhava nas toalhas de mesa.

-- Parecia um campo de batalha coalhado de cadáveres! – ri. – E eram sempre os mesmos cadáveres... Eu entrava e minha mãe me pedia para preparar ovos mexidos para a tropa. Eu ganhava um trocado com isso. Quando ia saindo para o tênis, nova leva de defuntos acordava das profundezas e pedia alguma coisa para comer. Lá ia eu para a cozinha novamente, para fazer mais ovo mexido...

o O o

Saindo da Consultec, Janjão foi para a Nutrícia, uma indústria de alimentação. Trabalhava como economista, em planejamento e estratégia, mas, ainda assim, passou a ter contato intenso com a área de alimentos. Fez um estágio na Kraft, freqüentava congressos de nutrição no mundo todo e, claro, encontrava muita comida interessante pelo caminho. Uma vez participou de uma reunião com Paul Bocuse, entenderam-se às mil maravilhas e, ato contínuo, estava em Lyon, como convidado do estreladíssimo chef. Durante as horas livres nas viagens, corria atrás de bons vinhos, de produtos exóticos, de temperos especiais.

Como tantas outras empresas, a Nutrícia acabou no governo Collor. Janjão foi trabalhar na conversão de velhas fábricas desativadas em shopping centers mas, passado algum tempo, decidiu que era hora de realizar seu sonho: um misto de bistrô, délicatessen e loja de produtos para cozinha, algo jamais visto na cidade. O pai ficou no auge da indignação: “Então você recebe uma educação de alto nível e agora vai trabalhar num balcão?! Você vai servir os seus amigos?!”

-- Ele nunca se conformou com a minha opção, -- lamenta Janjão. – Morreu sem ter posto os pés no Garcia e Rodrigues. Mas eu estava cansado de trabalhar só por trabalhar, estava cansado de ter de lidar com a burocracia do governo, com a corrupção geral... Queria trabalhar em alguma coisa que me desse prazer, queria um trabalho que me entusiasmasse, onde eu não sentisse as horas passarem.

O passo foi maior do que a perna, a situação entre os sócios ficou insustentável e o sonho acabou. Durante a fase Fiametta, foi chamado pelo supermercado Zona Sul para repensar as lojas, e criou as simpáticas pizzarias que quebram o galho de tantos cariocas esfomeados na hora das compras.

Um dia, Nick Barcellos, dona de um restaurante no Jardim Botânico chamado Lulu pediu uma consultoria. O restaurante estava mal das pernas, e ela queria saber o que fazer: vender, fechar, reformar? Entre uma sugestão aqui e um conselho ali, os dois se apaixonaram. Janjão comprou o restaurante, casou-se com Nick e foi feliz para sempre – ou, pelo menos, até este mês de março de 2012, em que ambos curtem, como se fosse uma nova criança, a Carandaí, montada numa antiga casa tombada, que estava caindo aos pedaços. Janjão vendeu o único apartamento, para desespero dos filhos João Pedro (32) e Mariana (31), e foi à luta.

Conversamos no Lorenzo Bistrô e, no fim da entrevista, fomos ver o novo empório. Ganhei uma baguete recém-saida do forno. No táxi, beliscando aquela delícia, cheguei à conclusão de que Janjão agiu muito bem. Apartamento próprio um monte de gente tem, mas um parque de maravilhas como aquele é único.

(O Globo, Rio, 11.3.2012)

05/02/2012

O árduo caminho do bem


Vera Cordeiro conta como levou o Saúde Criança, nascido numa cavalariça desativada, ao topo das ONGs


Ela se auto-define como “pedinte internacional”, e nessa qualidade viajou para Seattle, na semana passada, a convite da Fundação Bill & Melinda Gates, para expor o trabalho do Saúde Criança diante de 300 líderes da filantropia mundial. Este começo de 2012 anda movimentado para a Dra. Vera Cordeiro: de acordo com um ranking da revista suíça Global Journal divulgado há poucos dias, a sua instituição está em primeiro lugar entre as organizações sociais brasileiras, e em 38º entre as cem melhores do mundo. Os critérios utilizados para a seleção foram inovação, impacto, eficiência, estratégia, gerenciamento de finanças, transparência, sustentabilidade e reconhecimento – uma vitória e tanto para um projeto que nasceu numa cavalariça desativada.

Por que “pedinte internacional”? Porque, por incrível que pareça, boa parte dos recursos do Saúde Criança vem do exterior, onde a associação é mais conhecida do que no Brasil. Ela já recebeu mais de vinte prêmios internacionais e, mais importante, foi selecionada pelas duas principais fundações mundiais de apoio ao ativismo social, a Ashoka e a Skoll Foundation, que lhe deram ampla visibilidade no mundo das ONGs -- sigla que anda tão maltratada, aliás, que começa a ser rejeitada por quem trabalha com seriedade.

-- Eu sempre preciso explicar que a Skoll Foundation não tem nada a ver com a cerveja – diz Vera. – Seu fundador, Jeff Skoll, foi o primeiro funcionário do eBay. Ficou bilionário e em 1999, aos 41 anos, decidiu mudar o mundo. Como fazer isso? Procurou Bill Drayton, fundador da Ashoka e principal referência em filantropia, e recebeu o conselho de criar uma fundação que apoiasse empreendedores sociais.

Até hoje, apenas 85 ONGs foram premiadas pela Skoll Foundation. Pois em 2006, uma emocionadíssima Vera Cordeiro recebeu o prêmio das mãos de Robert Redford. Já Bill Drayton acha que há pessoas que tem, no campo social, o mesmo talento que um Bill Gates ou um Eike Batista têm no campo dos negócios, e que essas pessoas devem ser identificadas e apoiadas para ampliar o seu impacto na sociedade. Os dirigentes de ONGs que se enquadram nos severos critérios da Ashoka tornam-se fellows da fundação. Segundo uma clássica definição de Drayton, eles não dão o peixe nem ensinam a pescar, mas lutam para transformar toda a indústria da pesca. Tanto a Ashoka quanto a Skoll Foundation realizam encontros entre os ativistas que apóiam, transferem know-how entre eles e servem como importantíssimos cartões de visita para a captação de recursos.

Como é que uma modesta associação carioca, tocada por voluntárias, foi parar no concorrido mundo da elite do ativismo social? Quando se conhece a Dra. Vera, é fácil entender essa trajetória. Aos primeiros minutos de conversa, fica claro que essa mulher bonita, muito mais jovem do que os seus 61 anos, é uma pessoa determinada, movida pela paixão. Sua dedicação ao projeto é tanta que, nos primeiros tempos do Saúde Criança, os fundos vinham de rifas que ela fazia do que quer que encontrasse sobrando em casa. As filhas às vezes se desesperavam: “Meu tênis novo não, mãe!” Mas, quando ela convertia o valor de um Reebok em latas de leite em pó, a ação social falava mais alto do que as vozes das meninas.

o O o

Tudo começou no Hospital da Lagoa. Casada com Paulo, que trabalhava na IBM, e mãe de Marina e Laura, ela comparava a sua realidade com a das mães que chegavam ao hospital, e ficava extremamente angustiada:

-- Minha vida era uma loucura, -- diz. – Um dia eu estava em Lake Tahoe esquiando com meu marido e minhas filhas, e no dia seguinte estava no hospital, onde uma mãe trazia o filho para amputar a mão porque havia tomado o soro errado numa trambiclínica. A mãe dizia: eu entendi que tem que amputar. Mas a senhora tem um emprego para me arrumar? Uma outra vez, um colega me chamou para ajudar na quimioterapia de uma criança de sete anos. A mãe era uma pessoa da minha idade, muito envelhecida, com outros nove filhos além daquele com câncer renal. Eu tinha que ajudar aquela mulher a entender o que a criança ia passar. Depois que expliquei tudo, a mãe me disse: Tudo bem, doutora, entendi. Mas a senhora tem um lençol velho para me dar? Porque eu não tenho agasalho para o meu filho, e venho de Juiz de Fora para ele fazer a quimioterapia, que lá não tem. Ou o caso da criança que tinha má absorção, e que precisava tomar um leite muito caro: Doutora, a senhora cria o meu filho? Eu não tenho como criar, ele vai morrer. Ou ainda o menino com síndrome nefrótica, que era internado e tratado, ficava bom, e os remédios que ele precisava tomar eram devidamente prescritos; mas o pai era alcoólatra e a mãe tinha uma deficiência mental, e logo ele estava de volta ao hospital. Um dia, depois de muitas internações, ele não resistiu e morreu. Num país de primeiro mundo esse menino não teria falecido.

Vera percebeu que estava diante de um ciclo vicioso: miséria, internação, alta, reinternação e morte. Como médica, conseguia tratar a doença aguda, mas isso era pouco diante do problema real. Segundo a OMS, a causa de um terço das mortes no mundo é a pobreza -- e ela se deparava com essa causa diariamente. Não podia mais conviver com aqueles casos, e chegou à conclusão de tinha que sair do hospital para tratar, de fato, dos seus pacientes.

-- Eu precisava tratar também do lado psicossocial da doença, porque o adoecer é biopsicossocial, mas a medicina tradicional trata apenas do bio, -- observa. -- E do psicossocial, quem trata? Devia ser o governo, mas mesmo governos ótimos, como o do Canadá, não dão conta disso sozinhos. Mesmo que não houvesse corrupção no Brasil, o governo não daria conta, porque saúde não é só curar uma doença, saúde é tudo. Às vezes uma criança é internada com pneumonia ou tuberculose mas, se você for ver as condições de moradia dessa criança, vai constatar que qualquer um teria tuberculose lá, porque chove dentro da casa, não tem comida... A real causa das doenças, no mundo em desenvolvimento, ou na sua parte menos favorecida, é a miséria. São os profissionais da saúde que vêem, de perto, as conseqüências da trágica distribuição de renda no país. E vêem de pés e mãos atados.

Corria o ano de 1991. Vera juntou um grupo quixotesco de vinte voluntárias, e se estabeleceu num espaço que ocupava parte das antigas cavalariças do Parque Lage. Era lá que trabalhavam as voluntárias que, desde a época do presidente Dutra, costuravam roupinhas para as crianças do Miguel Couto. A líder deste grupo era amiga da mãe de Vera, e ofereceu abrigo para o novo projeto.

-- Fui conversar com o Betinho, que nos deu todo o apoio possível, -- lembra Vera. -- Nós precisávamos desesperadamente de dinheiro. Os padres, que eram os únicos que nos davam bola naquela época, diziam: “Vocês tocam o sagrado, crianças pobres doentes, Deus vai ajudar”. Tudo bem, padre, mas com que dinheiro? “O dinheiro há de vir”.

o O o

A estrutura inicial da organização era, basicamente, um armário com remédios e comidas -- mais o motorista da família, que em tese deveria levar Marina e Laura para o curso de inglês, mas era desviado por Vera para incursões às favelas, para checar as condições de vida das famílias atendidas. Os amigos começaram a fugir. Eles sabiam que, se ela ligasse, não era para ir ao cinema ou para bater papo, mas para pedir donativos. O pior é que, mesmo no hospital, o projeto era visto com reservas, como se fosse um hobby de senhoras entediadas.

A idéia do Saúde Criança, que então se chamava Renascer (nome descartado há dois anos para evitar confusões com a igreja evangélica), era atacar a miséria em várias frentes. Além dos cuidados com a saúde das crianças, o grupo conseguia documentos para as famílias, oferecia treinamento profissional para mães e pais e reformava as casas para garantir condições mínimas de moradia.

-- Fiquei meio apavorada no começo, -- diz Vera -- Volta e meia chegavam pacientes direto da Rodoviária Novo Rio perguntando “É aqui que dá emprego, comida e remédio?” Logo ia se espalhar que havia uma médica maluca no Parque Lage tentando salvar o mundo...

Não foi um começo fácil. Em pouco tempo, os vizinhos implicaram com o vaivém de miseráveis e retomaram as cavalariças. As voluntárias mudaram-se então para uma estrutura menor, o antigo galinheiro de Gabriela Bezansoni-Lage. Vera conseguiu que o Banco Icatu o reformasse – mas, quando as obras estavam pelo meio, foram embargadas. Os vizinhos haviam entrado na Justiça, queriam que o Saúde Criança saísse de vez do Parque Lage. Vera não se deu por vencida. Alugou um trailer, e passou a tocar o projeto de lá.

-- Foi uma época terrível, -- lembra ela. – Um dia, fui à Barra da Tijuca para consultar a arquiteta que estava fazendo as obras. Ela me disse que não podia fazer nada enquanto o embargo vigorasse. Nós estávamos trabalhando dentro de um trailer, não tínhamos dinheiro, tudo era uma luta. E eu voltei da Barra dirigindo e brigando com Deus. Deus, eu dizia, se você não ajuda mais criança pobre doente, você pode me explicar o que é que Deus faz? Para que serve Deus? Qual é a sua job description? Não estou com paciência para Deus! Quero que o senhor me diga se eu devo continuar lutando para permanecer no Parque Lage ou se eu desisto de tudo. Mas eu quero uma prova cabal, entendeu, Deus? Ora, naquela época, eu tinha mandado fazer cem plásticos que diziam Renascer -- Grupo de Apoio à Criança e ao Adolescente, e que distribui entre os amigos. E, assim que chamei Deus às falas, um carro com esse plástico colado na janela de trás ultrapassou o meu. Não é que Deus responde? Mais tarde, quando consultei o I-Ching, também recebi uma resposta muito positiva. Dizia: “Após diversas batalhas, a vitória está garantida”. Pois olha, quatro meses depois, d. Ruth Cardoso estava inaugurando a nossa sede, construída onde era o antigo galinheiro.

Antes disso, animada pela resposta divina, Vera saiu batendo em todas as portas até chegar ao Palácio da Alvorada, onde foi expor a situação ao presidente Fernando Henrique Cardoso. O Parque Lage é federal, e só ele podia ajudá-la na briga com os vizinhos. Pouco depois, ele assinou um decreto garantindo a permanência do Saúde Criança no seu cantinho.

Em 1993, Vera deu um dos passos mais importantes para a sustentabilidade do Saúde Criança: candidatou-se a fellow da Ashoka. Foram nove meses de entrevistas. Finalmente, ganhou uma bolsa mensal de U$ 650 – mas, mais importante do que isso, ganhou uma vitrine mundial para o seu projeto. A Ashoka passou a mandá-la para todos os fóruns de ativismo social, para que apresentasse o Saúde Criança e fizesse contato com outras pessoas que, como ela, estavam tentando melhorar o mundo.

-- Uma vez, apresentei o nosso projeto para 200 consultores da McKinsey. Quando terminei, todos aplaudiram de pé... e eu desatei a chorar. Até então só tinha tido dificuldades, estava sendo expulsa do Parque Lage e, de repente, era compreendida.

O resto, como se diz por aí, é história. Desde a sua fundação, o Saúde Criança já ajudou mais de dez mil crianças e mais de 2.800 famílias. Juntas, as 23 organizações que copiaram seu modelo em outros estados apoiaram mais de 40 mil pessoas. Os resultados são excelentes: o índice de reinternação das crianças assistidas cai em média 65%, e a renda das famílias aumenta cerca de 40%.

-- Quando me perguntam qual é o objetivo do Saúde Criança, eu respondo que é transformar miseráveis em pobres, -- diz Vera.

Os números lhe dão razão: é preciso começar pelo começo.


(O Globo, Rio, 5.2.2012)

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09/01/2012

Geraldo Carneiro: o ritmo acelerado do poeta mineiro





2011 foi um ano movimentado para o poeta Geraldo Carneiro. Ele traduziu o que define como uma versão redux de Romeu e Julieta, chamada “RJ de Shakespeare”, que estréia essa semana em São Paulo depois de uma vitoriosa carreira carioca; escreveu para a Globo, com Alcides Nogueira, a novela “O astro”, baseada na obra de Janete Clair; a pedido de Daniel Filho, fez as introduções para os 16 episódios de “As brasileiras”; apresentou-se com a atriz Mariana Ximenes pelo Brasil afora, numa série de palestras que vão virar DVD; adaptou “Gota d’água”, a peça de Paulo Pontes e Chico Buarque, para o cinema, a pedido de Roberto Talma; lançou seu segundo CD, “Gozos d’alma”, pela Biscoito Fino; e começou alguns projetos que serão terminados em 2012, entre eles o roteiro cinematográfico de “A casa dos budas ditosos”, a quatro mãos com o autor e grande amigo João Ubaldo Ribeiro, e “Discurso do amor rasgado”, livro em que celebra seus trinta anos de convívio com Shakespeare, e que será publicado pela Nova Fronteira. Tudo isso fora o varejo de canções e poemas, que brotam naturalmente, sem esperar ocasião.

É muita coisa para um poeta só, mas o tempo e o trabalho fazem bem a Geraldo Carneiro, casado desde 2008 com sua linda musa Ana Paula Pedro. Ele reclama em tom de troça da decrepitude física e metafísica, mas mudou espantosamente pouco desde que começou a aparecer, ainda adolescente, no cenário da música brasileira.

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No front doméstico, o ano não foi menos intenso. Em fevereiro nasceu o primeiro neto, Santiago, filho do filho mais velho, Joaquim (30 anos); e, quatro meses depois, veio ao mundo Vinícius, o filho mais novo. (Antonio, o do meio, tem 14 anos). Como costuma acontecer com bebês, ainda mais quando são dados e risonhos, Vinícius é o rei da casa.

-- O Vinícius é um carnavalesco, vai no colo de todo mundo, acha a maior graça, gosta de tudo. Parece o velho Vinicius. Quando nós escolhemos este nome para ele, fiquei rindo durante um mês, porque nunca imaginei que um ser tão pequenininho pudesse ter o mesmo nome daquele outro Vinicius, que foi tão importante na minha vida. Ele gravou uma música minha quando eu ainda era menino, acabei escrevendo a primeira biografia dele e fomos muito amigos, ainda que no começo eu o olhasse com um certo cuidado, porque o achava licencioso, libertário demais. Eu me sentia meio careta ao lado dele, e olha que para eu me sentir meio careta nos anos 70 era complicado... Ele era muito doido. O Vinicius me inspirava sentimentos paradoxais: amor, admiração, inveja. Era de um carinho extraordinário, me ensinou a fazer coisas impublicáveis! Lamento ter tido em relação a ele aquela tendência parricida que as gerações mais novas têm em relação às gerações anteriores, lamento não ter convivido com ele da forma amorosa que ele propunha, eu mantinha um olhar crítico, ia à casa dele, ficamos amigos, mas nunca chegamos a ser realmente íntimos.

O convívio entre Geraldo e o Vinícius pequeno foi afetado pelo trabalho na novela, mas de forma positiva: como atravessa as madrugadas escrevendo, ele pode observar a evolução do filho num horário em que poucos pais estão acordados. Entre uma cena e outra de “O astro”, acompanhava as mamadas e resmungos noturnos do seu bebezinho. No momento, as madrugadas estão menos longas, mas não menos produtivas. Vinicius dorme, enquanto o pai trabalha em novos roteiros e escreve sobre os 60 anos que fará em junho. Idade que, como sabem todos que chegaram lá, parece muito distante até o momento em que bate à porta.

-- Todo mundo conta que, quando vai para a fila especial, acha que os outros vão ficar indignados, mas que nada, todos acham perfeitamente natural aquele cara lá... (risos) Estou me enchendo de trabalho para afastar o espectro que ronda os sexagenários. Aliás, que palavra horrível, implica uma série de trocadilhos... Mas não posso me queixar. Estou num momento apaziguado e feliz. Há guerras dentro de mim, mas são guerras de aperfeiçoamento, não guerras de destruição. E tenho me cansado tanto de trabalhar, que tenho sonhado muito com aquelas coisas de um ser humano padrão, aquele ser humano que quer se alimentar e dormir, em suma, certos prazeres da existência aos quais eu nunca tinha prestado atenção, e que, por força das circunstâncias, estão me parecendo espetaculares. Jantar, dormir, uma vida pacífica... quem diria!

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Geraldo Carneiro nasceu em Belo Horizonte, mas mudou-se para o Rio aos três anos, quando o pai, secretário de Juscelino Kubistchek, veio para a então capital. Pelo apartamento da família, em Copacabana, políticos, músicos e escritores circulavam com a mesma desenvoltura, o que acabou marcando a sua infância e a dos irmãos, o músico Nando e a historiadora Elizabeth.

A música, quase uma segunda natureza, começou cedo. Seu primeiro parceiro, ainda na adolescência, foi Eduardo Souto Neto. Os dois compuseram juntos “Choro de nada”; Vinicius de Moraes gostou, decidiu gravar, mas achava que precisava mudar um verso. O final original era “Retomo o rumo de casa / Com um sorriso nos olhos / Você não sabe de tudo / Você não sabe de nada”; Vinicius queria “Retomo o rumo de casa / Com a alma reconfortada / Você não sabe de tudo / Você não sabe de nada”. Com a arrogância dos 18 anos, Geraldo não permitiu. E foi embora para Roma, trabalhar com Astor Piazzola num musical sobre Evita Peron que acabou não saindo. Enquanto estava por lá, recebeu uma cartinha gentil de Eduardo, que contava que a canção havia sido gravada – sem entrar em detalhes. Na volta ao Rio, meses depois, é que descobriu que a mudança de verso havia, afinal, sido feita.

Mas a história dessa música, até hoje uma das suas letras mais conhecidas, não acaba aí. Passaram-se três ou quatro anos, e Tom Jobim também quis gravá-la, junto com Miúcha... mais uma vez trocando o verso da discórdia! Dessa vez ficou “Retomo o rumo de casa / Na noite desconsolada / Você não sabe de tudo / Você não sabe de nada”. “Choro de nada” só foi gravada com a letra original no ano passado, por Danilo Caymmi, para o CD “Gozos d’alma”.

De “Choro de nada” até hoje foram mais de 200 canções, em parcerias com o irmão Nando, com Egberto Gismonti, com Astor Piazzolla, com John Neschling, com Francis Hime, com Wagner Tiso. E, desde então, os seus versos foram deixados em paz.

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Vendo o mundo da sua infância e juventude pelos olhos de hoje, Geraldo Carneiro não alimenta falsas ilusões. O planeta era mais instável e, com certeza, bem mais explosivo:

-- Você se dá conta de que, quando nós éramos crianças, o mundo podia ter acabado? A crise dos mísseis, em 62, foi o preâmbulo do apocalipse. Depois, em 64, veio a ditadura militar, vivemos momentos muito difíceis. Agora, embora as pessoas não se dêem conta, estamos vivendo um momento particularmente feliz. Há uma distensão social, uma tolerância, uma aceitação da alteridade... Há conquistas do Século XX que entraram com força pelo Século XXI. Veja a Primavera Árabe, que coisa maravilhosa, quem teria imaginado isso? Claro que tudo é muito precário e pode acabar da noite para o dia, e os dinossauros vão para as cucuias. Nós, os novos dinossauros, podemos ter o mesmo destino. Mas é bom não perder de vista as coisas boas quando estão acontecendo. O mundo é cheio de descontinuidades, mas tomara que haja uma continuidade nesses processos.

-- Isso, claro, se a profecia dos maias não se concretizar e o mundo não acabar em 2012...

-- Ah, os maias não têm muito prestígio profético aqui no Rio não. Cesar Maia, Rodrigo Maia... o Dem está por baixo. (risos)

Geraldo Carneiro não espera um mundo muito diferente para o bebê Vinícius. O maior temor atual, o de um apocalipse ecológico, não o assusta: ele se agarra a uma “teoria ridícula” que, dada a devida licença poética, é até engraçada:

-- Wall Street fica ao nível do mar. Quando o mar subir dez centímetros e molhar o sapatinho daqueles executivos – aqueles sapatos caros, que eles compram em Londres – eles param instantaneamente de mexer com as empresas poluidoras. Então você tem um controle quase imediato da situação, graças aos sapatos londrinos de Wall Street. Não é uma boa teoria?

Do ponto de vista científico, certamente não, mas como pouca gente se entende mesmo sobre as causas e conseqüências do aquecimento global, ela é, provavelmente, uma teoria tão boa quanto outra qualquer. De qualquer forma, ela mostra uma das facetas mais divertidas do poeta: seu talento extraordinário para a conversa fiada, para o bate-papo sem compromisso que, viva ele!, sempre foi a marca registrada dos bons cariocas.


(O Globo, Rio, 8.1.2012)

19/12/2011

O sotaque português de um bistrô carioca



Um dia, os amigos Chico Mascarenhas e Ricardo Guimarães estavam jogando poôquer com as mulheres, Maria Cristina, a Tintim, e Priscilla. A certa altura, Ricardo reclamou de fome e Chico, que sempre cozinhou, resolveu fazer uma comidinha. Pois a comidinha ficou tão boa, mas tão boa, que, no ato, os dois resolveram abrir um restaurante. Arranjaram um ponto na Gávea, juntaram os nomes Guimarães e Mascarenhas, e o resto, como se diz por aí, é história: aos trinta anos, completados no outro sábado, o Guimas é um dos mais queridos restaurantes do Rio. Até hoje, aos domingos, a clientela encara filas homéricas, sem reclamar.

-- Nós inovamos na comida, -- diz Chico, sem falsa modéstia. -- Há um porquê meio matreiro nisso, que depois eu conto; mas inovamos também num outro detalhe. Fomos um dos primeiros restaurantes em que o dono era amigo dos clientes. Antes o dono era, tipicamente, um espanhol que ninguém conhecia.

Taí um pecado do qual ninguém podia acusar o luso-carioca Chico. Nascido em Lisboa há 63 anos, fotógrafo e bom-vivant, ele era conhecido em todas as rodas boêmias da Zona Sul; nada mais natural que seu restaurante virasse ponto de encontro dos companheiros.

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Chico chegou ao Rio aos 15 anos, acompanhando os pais e os quatro irmãos. O pai, Domingos Mascarenhas, era diplomata, e vinha tentar mudar a percepção que aqui se tinha do Portugal salazarista. Quando a família seguiu em frente, o filho do meio ficou para trás, encantado com a cidade; mas nem todas as maravilhas cariocas foram suficientes para segurá-lo quando a ditadura começou a pôr as manguinhas de fora.

Uma noite, nos idos de 1971, Chico foi preso na Real Grandeza. Nada demais: estava sem documentos, usava jeans e cabelos compridos. Pela ótica militar da época, era um elemento suspeito. No quartel ouviu ameaças dos policiais e, assim que se viu livre no dia seguinte, decidiu ir embora. Ele tinha direito a uma passagem por conta do Ministério das Relações Exteriores de Portugal; ligou para o pai, que a essa altura estava em Moçambique dirigindo um jornal, e logo estava a caminho de Lisboa, onde passou a ocupar o apartamento da família.

No Rio, estudara fotografia e trabalhara como assistente do professor. Volta e meia sobrava uma camera na escola, e Chico saía pela cidade fotografando. Em Lisboa, passou a dividir o apartamento com o amigo Pedro Pinheiro Guimarães, que tinha máquina – que, por sua vez, a dividia com ele. Um fazia um filme, o outro outro, e assim por diante. Funcionava, mas ele tinha vontade de fazer vôos mais altos, e assim resolveu procurar Claudio Mello e Souza, diretor da sucursal da Manchete na cidade.

-- O Claudio era muito amigo do meu pai, -- conta. – Os dois eram apaixonados por Eça de Queiroz, chegavam a trocar correspondência sobre o Eça, e fui muito bem recebido por ele.

O jovem fotógrafo foi contratado, junto com o amigo Pedro. Pouco depois, Claudio assumiu a sucursal de Paris, e convidou-os a ir junto.

-- A sucursal de Paris era mais estruturada do que a de Lisboa e tinha um chefe de fotografia. O Cláudio disse que a última palavra sobre a nossa contratação seria dele, a quem ficaríamos subordinados caso fossemos aceitos. Naquela época eu tinha um irmão que morava em Paris, tinha vários amigos em Paris, e todos conheciam o Aléssio Andrade, chefe de fotografia da sucursal da Manchete. Quando souberam que seriamos julgados por ele, foram unânimes: “Nem se dêem ao trabalho de vir, ele vai rasgar os contatos, vai jogar os negativos para o alto, é super exigente!”.

Mesmo assim, Chico e Pedro resolveram tentar a sorte. Levaram cópias dos seus trabalhos e foram enfrentar a fera – que, de cara, descartou todo o material.

-- Ele não queria ver cópias das fotos; queria ver os contatos, para saber o que nós víamos, -- lembra Chico. -- Fomos aceitos, com uma recomendação: ir aos museus nas horas vagas. Eu pensei, esse cara é doido, quero ser fotógrafo e ele me manda para museu! Mas é lógico que essa era a melhor recomendação que ele podia nos dar. Assim treinamos o olho, aprendemos luz, composição, tudo. Até hoje tenho muita influência do Aléssio. Saíamos muito juntos, e há livros dele em que eu estou ao lado, ou entro na foto sem querer.

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Foi em Paris que Chico e Tintim, que já se conheciam do Rio, acabaram se casando. Mas o que era divertido para um rapaz solteiro acabou se revelando cansativo para um jovem pai de família. Um dia, os dois decidiram fazer as malas e ir para a Indonésia. Estavam com tudo pronto quando Portugal e Indonésia romperam relações diplomáticas por causa da invasão de Timor Leste. O jeito foi voltar para o Brasil.

Bem que Chico tentou continuar na fotografia, mas nenhum dos trabalhos que aparecia o atraía. Tentou jornais e revistas, tentou fotografia de moda, mas nada. Quando viu, estava trabalhando na empresa de perfis de alumínio do irmão. Outro emprego para o qual não era talhado.

-- Um dia cheguei em casa e disse para Tintim: vou largar o emprego. Achei que ela ia reclamar mas, pelo contrário, me deu a maior força.

E aí aconteceu aquela famosa partida de pôquer com os amigos Ricardo (falecido há dois anos) e Priscilla. O momento, por acaso, revelou-se ideal:

-- Havia uma geração inteira começando junto, -- lembra ele. – Era gente de música, de poesia, de teatro. E havia psicólogos, publicitários, jonalistas... Os clientes eram amigos entre si. Além disso, o Guimas era bem pequenininho. Não que seja muito grande hoje, mas na época era ainda menor. Isso estimulava o clima de camaradagem. Nós tínhamos um painel de cortiça onde as pessoas deixavam recado umas para as outras: “Me liga”, “Me encontra aqui às nove” e assim por diante.

Os filhos dos amigos que moravam perto passaram a ver o restaurante como uma extensão de casa. Os próprios pais diziam que, qualquer problema, era só correr para o Guimas. Com o tempo as crianças cresceram, e já começam a trazer os filhos para almoçar, reforçando a tradição familiar.

A atriz Cissa Guimarães é uma das habituées da casa, que freqüenta desde sempre. Atualmente com peça no Shopping da Gávea, ali do lado, ela pode ser encontrada no restaurante noite sim e outra também:

-- Conheci o Chico quando dançava na Enid Sauer – lembra Cissa. – Eu devia ter uns 12, 13 anos. De repente olhei para a coxia, e lá estava um fotógrafo absolutamente deslumbrante, louro, de olhos verdes... Não acertei mais um passo depois disso! Com todo o respeito pela Tintim, foi paixão à primeira vista. Como tantos amores, aliás, esse também começou com paixão, e acabou virando família: o Guimas é mais do que meu restaurante, é quintal da minha casa, é minha família, é um lugar onde me sinto protegida e bem-tratada. Nem precisava ter uma comida tão boa, mas tem. Quem pode querer mais?

Outra que fala em família quando trata do Guimas é a estilista Isabela Capeto. Chico e a mulher Tintim, são vizinhos dos pais de Isabela, que acompanhou o crescimento das filhas do casal, Domingas, Luiza e Isabel, desde pequenininhas. Hoje orgulha-se quando vê Domingas, a mais velha, trabalhando no restaurante.

-- Sou super fã da casa, dos garçons, do Chico, da Domingas – diz Isabela. – O meu primeiro ateliê ficava muito perto, e fazíamos nossas reuniões na varanda do Guimas. Existe lugar mais agradável? Este ano mesmo comemoramos o aniversário do meu marido lá. A nossa vida continua passando pelo Guimas.

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Chico e Tintim sempre gostaram de receber amigos. Mesmo quando moravam em Paris, e o dinheiro era curto, viviam inventando festas e jantares, para atual perplexidade de Chico, incapaz de perceber como aquela vida era possível com tão parcos recursos. Natural, portanto, que a hospitalidade se transferisse para o restaurante, que passou a funcionar como uma extensão da sala de casa.

-- Todo mundo me perguntava por que eu não abria um restaurante. É uma pergunta normal, sempre que alguém cozinha os outros propõem a abertura de um restaurante, acham que o restaurante é só o salão, só o glamour, esquecem que tem a parte de trás. Eu também esqueci, é claro, depois é que aprendi. Aqui é a festa, mas o pulmão é lá atrás.

Muitas pessoas que cozinham bem acabam mesmo abrindo restaurantes – para fechá-los pouco tempo depois. A simpática casa de Chico e Ricardo foi uma das poucas exceções à regra. O clima de camaradagem que sempre distinguiu o Guimas é certamente uma das razões da sua longevidade, mas aquele primeiro cardápio também foi muito importante.

-- Eu falei que havia um porquê meio matreiro nos nossos pratos. Claro que eu me irritava muito com o cardápio pesado e sem imaginação que encontrava nos restaurantes da época, mas a principal razão que nos levou a apresentar tantas novidades é que assim não era possível comparar nada. Ninguém podia comparar nosso filé boursin com o dos outros, porque não havia o dos outros... A truta com espinafre, o pato da fazenda, esses pratos que até hoje estão no cardápio, eram literalmente incomparáveis, pelo simples motivo que só nós os faziamos.

Outro truque que deu certo: a toalha de papel com o potinho de lápis de cera, sucesso até hoje com crianças e pais de crianças. A idéia, que é praticamente marca registrada do Guimas, antecede o restaurante. Um dos irmãos de Chico mora em Nova York, e uma vez, ao visitá-lo, ele ficou impressionado ao ver como Domingas, ainda pequenina, se distraía com a toalha e os lápis de um bar que freqüentavam.

Quando o projeto do Guimas começou a tomar corpo, e Chico e Ricardo começaram a estudar o “business restaurante”, descobriram que toalhas e guardanapos eram itens extremamente caros na equação. Ao optarem pelas toalhas de papel, o potinho de lápis de cera foi imediatamente lembrado. Está lá até hoje, assim como estão vários desenhos feitos por clientes, crianças e adultos, devidamente emoldurados. Outros, incontáveis, estão guardados, mas já serviram para decorar o Guimas do Fashion Mall e para uma exposição no Barra Shopping.

Frequentador assíduo, o poeta Geraldinho Carneiro tem uma teoria para explicar o sucesso e a longevidade do restaurante:

-- O Chico, que é um carioca falsificado, porque é português, conseguiu fazer, no Rio, um perfeito bistrô parisiense, -- diz ele. – Você passa pela maluquice do Baixo Gávea, entra numa ruazinha pequena e pronto, está numa sucursal da Brasserie Lipp. Tudo é muito simpático no Guimas, a começar pelo Chico e pela Tintim, que são uns encantos de pessoas, e passando pelo ambiente da casa, com os desenhos emoldurados. Quantos restaurantes você conhece que tem Angelo de Aquino na parede? Em suma, eu diria que o segredo do Guimas é que ele é um bistrôzinho francês, feito por um português, com uma adorável mistura carioca. Um dos mais bem-sucedidos exemplos de miscigenação tropical que eu conheço.

Verdade que, no começo, o bistrôzinho estava mais para botequim. Tinha salaminho e queijo Palmira mas, além disso, os amigos da casa levaram para lá um freezer, que encheram de garrafas de cerveja. Às vezes, durante à tarde, Chico sentava-se de frente para o freezer e punha as mãos na cabeça:

-- Meu Deus, o que é que eu vou fazer com isso?! Onde é que eu me meti?!

O contrato feito com o proprietário das três lojas que compõem o Guimas foi assinado prevendo o pagamento do ponto em seis meses. Se tudo desse certo, ao cabo do período Chico e Ricardo pagariam o valor estipulado; caso contrário, devolveriam as lojas, dando como pagamento as melhorias que haviam feito. Pois em dois meses o ponto estava devidamente quitado.

Cinco anos depois, o restaurante ganhou uma filial no Fashion Mall, que funcionou durante ótimos 14 anos até ser derrotada pela guerra do tráfico entre Rocinha e Vidigal, que afastou o público de São Conrado. Chico lembra-se dela com saudades. Ele sempre quis ter um bar, e lá conseguiu realizar o seu sonho.

-- O meu bar ideal é o P.J. Clarke’s, em Nova Iorque. O filho do dono viveu no Brasil quando era menino, fala até um pouco de português, e ficamos amigos, -- conta. – Quando abrimos o Guimas em São Conrado, fui lá, fotografei tudo e aproveitei vários detalhes no nosso bar. Ficou tão bom que volta e meia as pessoas nem queriam ir para as mesas, pediam para comer lá mesmo.

O Guimas teve filiais também no Barra Shopping e na Paul Redfern, mas essas foram experiências que não deram certo. A do Barra Shopping foi vítima de uma concepção errada de praça de alimentação que levou pelo ralo vários estabelecimentos; a da Paul Redfern nasceu condenada, porque Chico desprezou a sabedoria popular que marca certos pontos como “caveiras de burro”, lugares onde nada dá certo.

-- É incrível, mas caveira de burro existe mesmo, -- constata Chico. – Eu não acreditava nisso, mas é verdade. Aquele Guimas era ótimo, perfeitinho, mas as pessoas nem se lembravam de que existia...

A moral da história é que, nos planos para os próximos 30 anos, não há nenhum restaurante novo.

-- Nossos copos não são de cristal, nossas toalhas são de papel, mas esse Guiminhas da Gávea vai bem, e é muito pé quente.


(O Globo, Rio, 18.12.2011)

06/11/2010

Nunca houve tempo igual



As geladeiras eram importadas e os ventiladores um perigo para as crianças, com suas pás de metal desprotegidas. Comia-se manteiga sem culpa no café da manhã, almoçava-se em casa, jantava-se lautamente. Fotógrafos ganhavam a vida fazendo 3 x 4 na praça ou surpreendendo casais e famílias que passeavam na rua: os instantâneos ficavam prontos rapidinho, em menos de uma semana. As contas eram pagas em dinheiro vivo. O correio trazia cartas e telegramas. As cartas aéreas eram escritas em papel fino, para não ficarem pesadas e, por conseguinte, caras. Os comunicados fúnebres chegavam em envelopes com tarjas pretas, que lhes davam gravidade e os destacavam do resto da correspondência. A televisão era um aparelho de luxo, que apresentava programação local por algumas horas – e, mesmo assim, em pouquíssimos estados. Para o grande público, as notícias vinham pelo rádio e pelos jornais, que traziam informações de todo o tipo, das grandes manchetes ao resultado dos concursos públicos. O noticiário em imagens garantia a circulação das revistas semanais e a popularidade dos cine jornais, projetados nas sessões de cinema antes dos longa-metragens. Mães zelosas guardavam revistas para os trabalhos escolares dos filhos e, em toda casa com um mínimo de recursos, coleções de livros de referência para jovens tinham destaque nas estantes. Havia ótimo mercado para as enciclopédias, vendidas de porta em porta, em suaves prestações mensais. A palavra “tecnologia”, apesar de inventada em 1829, não fazia parte do vocabulário geral.

E, no entanto, a maior revolução jamais vivida pela humanidade estava em curso. Nada seria como antes, o que não é dizer pouco, ainda que a frase tenha se tornado banal: apenas nos dois séculos precedentes, com a Revolução Industrial, o mundo passou por mais transformações do que em todos os milhares de anos anteriores de História registrada. Já sabíamos que tudo pode mudar num piscar de olhos; só não sabíamos ainda que piscávamos tão depressa.

O Univac, primeiro computador comercial, fabricado, digamos, em massa – 46 unidades produzidas – foi lançado em março de 1951. Pesava 13 toneladas, tinha 5.200 válvulas e consumia mais energia elétrica do que um quarteirão bem iluminado. Por jurássicos que esses números nos pareçam hoje, o Univac representava um enorme avanço em relação às máquinas anteriormente desenvolvidas, capazes de lidar apenas com números e frequentemente chamadas, por justa causa, de “calculadoras”: projetado para trabalhar com informação numérica e de texto, ele marcou o início da Era da Computação de forma dramática.

Nas apertadíssimas eleições americanas realizadas no ano seguinte ao seu lançamento, o Univac previu a vitória de Eisenhower, quando todos os institutos de pesquisa apontavam Adlai Stevenson como vencedor. O pobre computador recém-nascidos foi desmoralizado pela televisão, que chegou a fazer um filmete troçando dos seus cálculos aparentemente absurdos, para pouco depois passar à categoria de oráculo sem igual. Essa máquina venerável e suas sucessoras prestaram bons serviços até a década de 70, quando finalmente se aposentaram com louvor.

Em meros 50 anos, a tecnologia alterou radicalmente o modo como vivemos. Nenhum aspecto do cotidiano ficou intocado, nenhuma pessoa escapou à sua influência. Mesmo as tribos mais remotas sentem de alguma forma o impacto da globalização. Se este impacto é para melhor ou pior é discussão apenas filosófica. Não há volta no caminho, porque não podemos ignorar hoje o que antes não tínhamos como saber.

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Quem não estava no Maracanã no dia 16 de julho de 1950 estava, provavelmente, ouvindo rádio. Mas esqueçam a imagem clássica do torcedor de ouvido colado ao radinho de pilha: o transistor ainda não entrara em cena, e os rádios eram, em sua maioria, objetos de mesa. As válvulas impediam a miniaturização, fazendo com que mesmo os portáteis existentes fossem pesados e desajeitados.

A triste notícia da derrota da seleção brasileira para o Uruguai chegou ao povo entre chiados e ruídos. Mas este som quase inaudível estava por um fio – e por algumas baterias, e alguns componentes que fizeram grande diferença.

Quando o Brasil ganhou sua primeira Copa, em 1958, o rádio de bolso já existia há um ano. Era um lançamento da empresa que viria a se chamar Sony e, embora a concorrência observasse, com desdém, que os seus vendedores usavam camisas com bolsos desproporcionalmente grandes, o modelo “pegou” e popularizou-se num átimo. Ele é, por sinal, o aparelho de comunicação mais bem sucedido de todos os tempos: supõe-se que existam no mundo cerca de sete bilhões de unidades.
Na Copa de 2010, torcedores do mundo inteiro estarão com aparelhos igualmente pequenos em mãos -- telefones celulares poderosos, capazes de se conectar à internet, de desempenhar uma infinidade de funções e de transmitir, ao vivo, as imagens perfeitas da TV digital.

Poucas coisas resumem tão bem o vertiginoso salto da tecnologia neste último meio século quanto a comparação entre os gadgets dos torcedores das Copas da Suécia e da África do Sul. Tão próximos no tempo que, em muitos casos, são a mesma pessoa, apenas 50 anos mais velha, eles estão a tal distância tecnológica uns dos outros que, a rigor, poderiam viver em planetas diferentes. E, considerando o quanto a Terra mudou, vivem mesmo.

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O transistor fez sua estréia no universo dos bens de consumo nos radinhos de bolso, que hoje nos parecem tão humildes e limitados; mas ele já funcionava em computadores, substituindo o arcaico sistema de válvulas, e foi etapa fundamental para o desenvolvimento do microchip, pequeno semicondutor que transmite informações num circuito integrado, apresentado em julho de 1959 por Bob Noyce, mais tarde um dos fundadores da Intel. Como acontece com freqüência quando o mundo está pronto para um salto dessas dimensões, havia várias idéias convergentes no ar: um ano antes, Jack Kilby havia proposto um modelo semelhante de circuito, mas o seu usava um elemento chamado germânio, em vez do silício escolhido por Noyce. No fim, as companhias para as quais ambos trabalhavam uniram forças e patentes, e estabeleceram o padrão para a indústria.

O resto é História. O microchip é, sem dúvida, uma das maiores invenções humanas, se não a maior. Já seria um prodígio pelo fato de, em todo o universo, não haver nada com semelhante densidade de energia; mas nenhum outro invento mudou tanto o mundo, e em tão pouco tempo. Vivemos cercados de microchips. Deles dependem os veículos que nos transportam, as nossas transações comerciais, as informações que recebemos, os alimentos que nos sustentam e, muitas vezes, até o ar que respiramos. Eles estão em equipamentos essenciais à nossa sobrevivência, como os marcapassos, e nas mais inúteis quinquilharias de camelô; nas ferramentas com que trabalhamos, em etiquetas de lojas, em brinquedos e até mesmo em animais, como implantes para identifica-los.

Escrevo no meu home-office, titulo pomposo para a biblioteca aqui de casa. Além do computador, há microchips no telefone de linha, nos dois celulares, no ar condicionado e em seu controle remoto, num reloginho que me informa as horas e a temperatura ambiente, nas duas câmeras fotográficas. E isso sem abrir as gavetas, verdadeiros ninhos deles, alojados que estão numa variedade de badulaques, do iPod a um cartão cafoninha de Boas Festas que toca Jingle Bells quando é aberto, e que não tive coragem de jogar fora porque, tendo acompanhado de perto a evolução da tecnologia, guardo ainda certo espanto diante de banalização tão radical.

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Essa espetacular universalização do circuito integrado só foi possível graças a uma revolução paralela, menos comentada mas não menos importante: a do disco rígido, outro respeitável senhor que completou 50 anos recentemente. Lançado pela IBM, o Ramac (de ‘Random Access Method of Accounting and Control”) era o par perfeito para os “cérebros eletrônicos”. Tinha o tamanho de duas geladeiras, pesava uma tonelada, era cheio de não-me-toques e vinha com a mirabolante capacidade de armazenar 5 Mb, ao custo de US$ 10 mil por Megabyte. Como lembrara a Rand, não era equipamento para ser adotado pelos lares comuns.

Mas, já em 1980, notáveis progressos se registravam na área. A IBM apresentou o primeiro disco rígido de 1 Gigabyte, que ocupava o espaço de uma única geladeira e pesava só meia tonelada. E, em outro front, a Seagate lançava o primeiro disco rígido de 5”1/2, com capacidade 5 Mb, ao modesto preço de US$ 1.500. Em 1981, cheia de otimismo, a revista “Creative Computer” previu que, em futuro próximo, o custo de 128K de memória cairia abaixo dos US$ 100.

Seria cômico se não fosse assombroso. Tendo tal custo por base, há menos de 20 anos 256 Mb saíam a US$ 200 mil; em 2010, pen drives de 2 Gb são distribuídos como brindes e saem quase de graça. Os de 256 Mb nem são mais fabricados. O cartão de memória do meu celular, por exemplo, da metade do tamanho de uma unha, tem capacidade para 16 Gb.

Em suma: em cinco décadas, o custo de armazenagem por Megabyte passou de US$ 10 mil a uma fração de centavo absolutamente irrelevante. Para mim, que comprei um HD de 20 Mb em 1987 a US$ 750, há poucos milagres iguais ao do barateamento e da miniaturização da armazenagem, que nos permitiram vôos nunca antes imaginados. Na sua esteira vieram as interfaces gráficas, os notebooks miúdos que não deixam nada a desejar aos velhos mainframes, os iPods, os games, a fotografia digital... É uma gama infinita de aplicações, que pavimentou o caminho para A Invenção Que Mudou Tudo.

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-- Como é que conseguíamos viver antes da internet?!

Como todo mundo, eu também perdi a conta do número de vezes em que ouvi ou formulei essa pergunta. E, embora tendo nascido bem antes dos anos 80, quando ela começou a se difundir, esqueci tudo. Recompor o mundo não-conectado é um exercício de imaginação impossível, que sempre deixa alguma coisa de fora.

Como encontravamos telefones e endereços? Como sabíamos quais filmes estavam em cartaz? Como descobríamos os horários dos vôo, a temperatura em Lisboa, o valor da rúpia? Onde estavam informações como a data de estréia de Casablanca, a idade da Brigitte Bardot, os recordes dos 50 metros de nado de peito? A quem recorríamos para saber como se tiram manchas? Como conseguíamos esperar meses por uma carta? Como dependíamos apenas dos discos que estavam nas lojas? Como fazíamos quando precisávamos da letra de uma música ou do trecho de um filme? Como elaborávamos o trajeto de casa para uma rua que não conhecíamos?

A resposta para essas questões, e tantas e tantas como elas, torna-se cada vez mais remota. É provável que, em breve, tornem-se tema de trabalho de escola e objeto de arqueologia urbana. E poderiam, desde já, virar um joguinho engraçado:

-- Quem sabe como...?

O fato é que, de 50 anos para cá, passamos a ser todos muito bem informados. Antigamente, a medida da curiosidade de uma criança restringia-se ao que sabiam os adultos à sua volta, aos eventuais livros de casa ou de uma possível biblioteca nas proximidades. Quem nascia longe dos grandes centros estava preso às limitações locais; geografia era destino.

Não mais. Com um pouco de curiosidade e uma conexão à internet, o velho ditado italiano passa, enfim, à realidade: tutto il mondo è paese. O mundo é uma aldeia.

* * *


Clico na barra do Word, que me informa que, até aqui, escrevi exatas 1.887 palavras, 11.380 caracteres. A tarefa está quase concluída, não há mais espaço. Clico novamente, desta vez no ícone do player, e a voz de Cesária Évora enche o escritório.

Os gatos espetam as orelhas, espreguiçam, ouvem por alguns instantes e voltam a dormir. E eu penso, pela enésima vez, em como a tecnologia nos transformou a todos em privilegiados. Houve um tempo em que só os reis podiam ouvir música quando bem entendessem -- e, ainda assim, ficavam limitados à orquestra da corte. Em breve, vou desligar o ar, por o computador em modo de espera e apagar a luz.

Agradeço à minha boa estrela, que me fez nascer na época certa.


(Do livro "50 anos construindo o futuro", publicado nos 50 anos da CBS Previdência)

09/08/2010

Programação:



Terça, 10 AGO
13h – Confinados, de Mrinal Sen (Antareen, Índia, 1994, cor, 35mm, 90 min, livre).
15h – Lagaan - a coragem de um povo, de Ashutosh Gowariker (Lagaan - Once Upon a Time in India, Índia, 2001, cor, 35mm, 224 min, livre)
19h – Laços, de Nagesh Kukunoor (Dor, Índia, 2006, cor, 35mm, exibição em digital, 147 min, livre)

Quarta, 11 AGO
13h – A terrorista, de Santosh Sivan (Theeviravaathi: The terrorist, Índia, 1999, cor, 35mm, exibição em digital, 95 min, 12 anos)
15h – Faça o que o seu coração mandar, de Farhan Akhtar (Dil Chahta Hai, Índia, 2001, cor, 35mm, exibição em digital, 180 min, livre)
18h30 - Devdas, de Sanjay Leela Bhansali (Devdas, Índia, 2002, 35mm, cor, 180 min, 12 anos)

Quinta, 12 AGO
12h – Você não está sozinho, de Rakesh Roshan (Koi... Mil Gaya, Índia, 2006, cor, 35mm, 176 min, livre)
15h30 – Iqbal, de Nagesh Kukunoor (Iqbal, Índia, 2005, cor, 35mm, exibição em digital, 127 min, livre)
18h - Bombaim, de Mani Ratnam (1995), 141 minutos (Bumbai, Índia, 1995, cor, 35mm, 141 min, 12 anos) + Debate: A Índia e o cinema: de Bollywood à Calcuttá, com Humberto Giancristofaro, José Carlos Monteiro e Raquel Valadares. Mediado pela curadora Gisella Cardoso.

Sexta, 13 AGO
13h30 – A rainha dos bandidos, de Shekhar Kapur (Bandit Queen, Índia, 1994, cor, 35mm, exibição em digital, 119 min, 16 anos)
16h – Siga em frente Munna Bhai, de Rajkumar Hirani (Lage Raho Munna Bhai, Índia, 2006, cor, 35mm, exibição em dvd, 144 min, livre)
19h – Do coração, de Mani Ratnam (Dil Se, Índia, 1998, 35mm, cor, 163 min, 12 anos)


Sábado, 14 AGO
10h15 – Como estrela na Terra, de Aamir Khan (Tare Zameen Par, Índia, 2007, cor, 35mm, exibição digital, 165 min)
13h30 – Zubeidaa, de Shyam Benegal (Zubeidaa, Índia, 2001, cor, 35mm, 150 min, livre)
16h30 – Um beijo na bochecha, de Mani Ratnam (Kannathi Muthamuttal, Índia, 2002, cor, 35mm, 130 min, livre)
19h30 - Maqbool, de Vishal Bhardwaj (Maqbool, Índia, 2003, cor, 35mm, exibição em digital, 132 min, 12 anos)


Domingo, 15 AGO
14h – Sr. e sra. Iyer, de Aparna Sen (Mr. & Mrs. Iyer, Índia, 2002, cor, 35mm, 120 min, livre)
16h30 – Três idiotas, de Rajkumar Hirani (03 Idiots, Índia, 2009, cor, 35mm, exibição em digital, 164 min, livre)
19h30 - Dança das sombras, de Adoor Gopalakrishnan (Nizhalkkuthu, Índia, 2002, cor, 35mm, 90 min, livre)

Terça, 17 AGO
13h – Faça o que o seu coração mandar, de Farhan Akhtar (Dil Chahta Hai, Índia, 2001, cor, 35mm, 180 min, livre)
16h30 – A rainha dos bandidos, de Shekhar Kapur (Bandit Queen, Índia, 1994, cor, 35mm, exibição em digital, 119 min, 16 anos)
19h30 – Confinados, de Mrinal Sen (Antareen, Índia, 1994, cor, 35mm, 90 min, livre)


Quarta, 18 AGO
13h – Você não está sozinho, de Rakesh Roshan (Koi... Mil Gaya, Índia, 2006, 176 min, livre)
16h30 - Zubeidaa, de Shyam Benegal (Zubeidaa, Índia, 2001, 35mm, cor, 150 min,livre)
19h30 – Um beijo na bochecha, de Mani Ratnam (Kannathi Muthamuttal, Índia, 2002, 35mm, cor/pb, 130 min,livre)

Quinta, 19 AGO
13h30 - Iqbal, de Nagesh Kukunoor (Iqbal, Índia, 2005, cor, 35mm, exibição em digital, 127 min, livre)
16h – Dança das sombras, de Adoor Gopalakrishnan (Nizhalkkuthu, Índia, 2002, 35mm, cor, 90 min, livre)
18h – Siga em frente Munna Bhai, de Rajkumar Hirani (Lage Raho Munna Bhai, Índia, 2006, cor, 35mm, exibição em digital, 144 min, livre) + Debate: Para onde aponta o cinema indiano contemporâneo? Com Cora Ronai, Ibirá Machado e Tatiana Monassa. Mediado pela curadora Gisella Cardoso.

Sexta, 20 AGO
14h – Maqbool, de Vishal Bhardwaj (Maqbool, Índia, 2003, cor, 35mm, exibição em digital, 132 min, 12 anos)
16h30 – Sr. e sra. Iyer, de Aparna Sen (Mr. & Mrs. Iyer, Índia, 2002, cor, 35mm, 120 min, livre)
19h – Três idiotas, de Rajkumar Hirani (03 Idiots, Índia, 2009, cor, 35mm, exibição em digital, 164 min, livre)

Sábado, 21 AGO
10h15 – Como estrelas na Terra, de Aamir Khan (Tare Zameen Par, Índia, 2007, cor, 35mm, exibição digital, 165 min)
13h30 – A terrorista, de Santosh Sivan (Theeviravaathi: The terrorist, Índia, 1999, cor, 35mm, exibição em digital, 95 min, 12anos)
15h30– Lagaan - a coragem de um povo, de Ashutosh Gowariker ( Lagaan - Once Upon a Time in India, Índia, 2001, cor, 35mm, 224 min, livre)
19h30– Bombaim, de Mani Ratnam (Bumbai, Índia, 1995, cor, 35mm, 140 min, 14 anos)

Domingo, 22 AGO
12h – Laços, de Nagesh Kukunoor (Dor, Índia, 2006, dvd, cor, 147 min, livre)
15h– Do coração, de Mani Ratnam (Dil Se, Índia, 1998, 35mm, cor, 163 min, 12 anos)
18h - Devdas, de Sanjay Leela Bhansali (Devdas, Índia, 2002, 35mm, cor, 180 min, 12 anos)

Debates

Debate 1 - Dia 12, às 20h20:

A Índia e o cinema – de Bollywood a Calcutá

Com Humberto Giancristofaro e Raquel Valadares. Mediado por Gisella Cardoso.

Debate 2 – Dia 19 agosto, quinta, às 20h20:

Para onde aponta o cinema indiano contemporâneo?

Com Cora Rónai, Ibirá Machado e Tatiana Monassa. Mediado por Gisella Cardoso.

28/02/2008

Como dar um comprimido a um gato


1. Pegue o gato e aninhe-o no braço esquerdo, como se estivesse segurando um bebê; segure o comprimido entre o polegar e o indicador da mão direita. Com o polegar e o indicador da mão esquerda, posicionados nos cantos da boca do gato, faça uma leve pressão para induzi-lo a abrir a boca. Ponha o comprimido na boca aberta e permita ao gato fechá-la, para que possa engulir.

2. Pegue o comprimido do chão e o gato de trás do sofá. Aninhe-o novamente no braço esquerdo e repita o processo.

3. Vá ao quarto tirar o gato debaixo da cama e jogue fora o comprimido lambuzado.

4. Tire um comprimido novo da caixa, encaixe o gato no braço esquerdo e segure suas patas traseiras com a mão esquerda. Force-o a abrir a boca e empurre o comprimido até a garganta com o indicador da mão direita. Feche a boca do gato imediatamente, e conte até dez antes de soltá-lo.

5. Tire o comprimido de dentro do aquário antes que envenene os peixes, e o gato de cima do guarda-roupa. Chame um amigo.

6. Ajoelhe-se no chão com o gato preso firmemente entre os joelhos, segurando suas quatro patas. Ignore os uivos histéricos do animal. Peça ao amigo que segure com força a cabeça dele, enquanto você abre a boca. Abaixe a lingua do gato com uma espátula de madeira e deixe o comprimido escorregar espátula abaixo até a goela. Esfregue o pescoço do gato.

7. Resgate o gato do trilho da cortina, abra a caixa e pegue um novo comprimido. Lembre-se se comprar nova espátula de madeira e de mandar consertar a cortina. Cuidadosamente enrole o gato numa toalha, de modo que apenas a cabeça fique de fora. Peça ao amigo para mantê-lo assim. Prenda o comprimido na ponta de um canudo, ponha o canudo na boca do gato e sopre com força.

8. Veja na bula do remédio se ele é nocivo para seres humanos. Beba água com açúcar para acalmar e para tirar aquele gosto horrível da boca. Ponha um bandaid no braço do amigo e lave o sangue do tapete com água morna e sabão.

9. Busque o gato no vizinho. Tire um novo comprimido da caixa. Ponha o gato dentro do armário da cozinha e feche a porta, mantendo apenas a sua cabeça do lado de fora. Abra-lhe a boca com uma colher de sobremesa e, com um elástico, acerte o comprimido direto na garganta.

10. Vá até a garagem e pegue uma chave de fenda para recolocar a porta do armário no lugar. Ponha uma compressa fria nos arranhões, e cheque se está com a vacina anti-tetânica em dia. Jogue a camiseta fora, e vista algo mais resistente.

11. Chame o Corpo de Bombeiros para tirar o gato do alto da árvore do outro lado da rua. Peça desculpas ao vizinho que bateu com o carro na cerca ao tentar desviar do gato. Tire o último comprimido da caixa.

12. Amarre as patas dianteiras e traseiras do gato com uma corda de varal, e prenda-o firmemente no pé da mesa de jantar. Calce luvas de jardinagem. Abra a boca do gato com uma pequena chave inglesa. Jogue o comprimido na garganta, seguido de um pedaço de filé mingnon; derrame água por cima para ajudá-lo a engolir.

13. Peça ao amigo para levá-lo ao pronto-socorro mais próximo. Não se preocupe, o médico vai dar anestesia local antes de suturar seus dedos e braços, e remover os estilhaços de comprimido que ficaram encravados no olho direito. Na volta, lembre-se de passar na loja de móveis e encomendar uma nova mesa de jantar.

14. Procure um veterinário que faça atendimento domiciliar.

05/05/2007

Eu sou o criminoso do caso PC Farias

Lucas Figueiredo


O governo Fernando Collor passou à História como sinônimo de corrupção. Da eleição (1989) ao impeachment (1992), a gangue que ocupou o Poder Executivo naquele período arrecadou US$ 1 bilhão com achaques, mutretas e golpes, segundo cálculos da Polícia Federal. A máquina de roubar ficou conhecida como Esquema PC, uma referência ao nome do tesoureiro da campanha presidencial de Collor, Paulo César Farias.

Como é sabido, com exceção de PC Farias, até hoje nenhum dos integrantes daquele grupo (empresários, políticos e autoridades) foi condenado em última instância pelos crimes cometidos. Collor, por exemplo, foi absolvido de todas as acusações, incluindo corrupção. (Ele cogita se candidatar a deputado federal por Alagoas nas próximas eleições.) O próprio Paulo César acabou sendo condenado por dois crimes, digamos, menores: falsidade ideológica (ele abriu contas bancárias com nomes falsos) e evasão de divisas. Só foi parar na cadeia, onde passou dois anos, porque fez a besteira de fugir do país.

O correto, portanto, seria refazer a frase da abertura deste artigo: o governo Collor passou à História como sinônimo de corrupção e também de impunidade.

E a impunidade atravessou os tempos. No dia 23 de junho de 1996, PC foi assassinado na sua casa de praia, em Maceió. O corpo do tesoureiro foi encontrado na cama, ao lado do corpo de sua namorada, Suzana Marcolino, ambos com um tiro de revólver calibre 38. Num primeiro momento, a Polícia Civil de Alagoas divulgou que Suzana teria matado PC e se suicidado. A investigação, no entanto, foi marcada pelas falhas, para dizer o mínimo.

Anos depois, pressionado pelo trabalho de investigação da imprensa, a polícia alagoana mudou sua versão do crime para duplo assassinato. Mesmo assim não foi capaz de dizer quem deu os tiros em PC e Suzana e quem mandou matá-los. Mais uma vez, os criminosos se safaram. E, ao que tudo indica, com muito dinheiro, já que a sobra do butim do Esquema PC nunca foi encontrado.

Esta é a história conhecida. Estou aqui para contar outra: eu sou o criminoso do caso PC Farias.

Comecei a escrever sobre os desmandos do governo Collor quando ainda estava na universidade. Recém-formado, fiz reportagens sobre o declínio do governo e sobre o impeachment. Em Brasília, como repórter, vi em 1994 a absolvição de Collor no Supremo Tribunal Federal. Dois anos depois, cobri em Maceió a morte de Paulo César e Suzana. O caso grudou em mim – e eu grudei no caso.

Nos quatro anos seguintes, dediquei-me a investigar as duas questões centrais do enigma PC/Collor. Ou seja, quem matou Paulo César Farias e onde foi parar o dinheiro do Esquema PC. Voltei a Maceió algumas vezes, e as pistas levantadas acabaram me levando à Itália, à Suíça, à Argentina, aos Estados Unidos e ao Uruguai. Não fui capaz de responder integralmente os enigmas, mas considero que fiz avanços. Em 1997, por exemplo, expus as ligações do Esquema PC com o crime organizado internacional. No mesmo ano, revelei que o Ministério Público de Alagoas tinha uma gaveta cheia (e fechada) com exames feitos por peritos e legistas independentes que indicavam que PC e Suzana tinham sido mortos por uma terceira pessoa. Outros informações vieram com o tempo, como os dados das contas de PC Farias no exterior, algumas delas ativas mesmo depois de sua morte.

No meio do caminho, como era esperado, esbarrei numa pressão brutal de quem preferia o mistério à luz. Fui ameaçado de morte em Alagoas e, em Houston (Texas), para onde fui atraído por um falso informante, escapei de uma arapuca.

No ano 2000, o resultado da minha investigação virou um livro: “Morcegos Negros: PC Farias, Collor, máfias e a história que o Brasil não conheceu”, publicado pela Record. Mesmo tendo passado oito anos do impeachment de Collor e quatro da morte de PC, o livro foi muito bem aceito, vendendo 30 mil exemplares, o que lhe rendeu 14 semanas na lista dos mais vendidos de revista Veja (categoria não-ficção). E foi assim que me tornei um criminoso.

Ainda no ano 2000, o juiz de Alagoas Alberto Jorge Correia de Lima (responsável pelo caso da morte de PC e Suzana) leu “Morcegos Negros” e não gostou. Ele entrou com um processo por danos morais, em Alagoas, contra mim e contra a editora Record. Na ação, o juiz questionava uma única frase do livro. A frase é a seguinte: “O juiz Alberto Jorge, que só reclamava, resolveu tomar uma atitude e solicitou à Secretaria de Segurança que indicasse um novo delegado para o caso”. Segundo o entendimento do juiz, ao dizer que ele “só reclamava” eu teria afirmado que ela nada fazia. Sendo assim, por vias tortas, eu teria afirmado que ele prevaricara.

A reclamação de Alberto Jorge foi aceita por seus colegas da Justiça de Alagoas, tendo início um processo kafkiano contra mim.

No julgamento de primeira instância, o juiz que analisou o caso não ouviu as minhas testemunhas, entre elas o senador Eduardo Suplicy e o ex-juiz Walter Maierovitch. E acabou por condenar a mim e a Record a pagar 350 salários mínimos, mais custas de advogado (aproximadamente R$ 200 mil, em valores corrigidos, um valor altíssimo para ações dessa natureza).

Tentei recorrer, mas na segunda instância Kafka voltou a atacar. O Tribunal de Justiça de Alagoas confirmou a condenação, mas, descumprindo uma norma sagrada da Justiça, não realizou corretamente a publicação do acórdão, deixando de intimar meu advogado local. Ou seja, fui condenado novamente, e dessa vez não fui avisado.

Ao verificar a falha, no dia 03 de agosto de 2004, entrei com uma petição no TJ de Alagoas comunicando o erro. Na petição, pedi a republicação do acórdão (ou seja, da sentença de condenação em segunda instância), a fim de que fosse aberto o prazo para eu recorrer da decisão. A petição foi recebida pelo tribunal, conforme comprovam duas fontes diferentes: o protocolo do TJ de Alagoas em meu poder e o site do tribunal (www.tj.al.gov.br), na seção de consulta a processos.

Além de entrar com a petição, enviei meu advogado, dr. Fernando Quintino, a Maceió. Em audiência com Quintino, o assessor de gabinete do TJ de Alagoas reconheceu o erro e afirmou que a sentença seria então publicada, reabrindo o prazo para que eu recorresse ao Superior Tribunal de Justiça, em Brasília. Passados quase dois anos, no entanto, o acórdão não foi republicado.

Em abril passado, meu advogado foi pessoalmente verificar o motivo de tanta demora. Foi quando tomei conhecimento de que minha petição simplesmente havia desaparecido do processo. O dr. Quintino folheou todo o processo e também não encontrou nenhum oficio solicitando ao tribunal a republicação do acórdão. Estava assim concluído Der Process: eu e Record éramos culpados.

Sim, eu me sinto perplexo, indignado e impotente diante do ocorrido. Mas ainda assim vejo um fio de coerência em toda essa história: se a gangue que se formou sob a sombra do governo Fernando Collor é inocente, eu só poderia estar mesmo do outro lado.


(Lucas Figueiredo é jornalista e escritor. É autor dos livros-reportagem Morcegos Negros (2000), Ministério do Silêncio (2005) e O Operador, publicados pela Record.)

O que é "contexto desfavorável"?

Paulo Coelho


Tenho uma grande admiração por Roberto Carlos -recentemente, um dos mais importantes programas da BBC Radio me perguntou a lista de cinco discos que eu levaria para uma ilha deserta, e incluí um dos seus. E, apesar dos problemas normais decorrentes de uma relação profissional, tenho um grande respeito pela editora Planeta, que publica minhas obras no Brasil e em vários países de língua espanhola.

Dito isso, é com grande tristeza que leio nos jornais que, na 20ª Vara Criminal da Barra Funda, em São Paulo, os advogados do cantor Roberto Carlos e da editora Planeta fizeram um acordo que prevê a interrupção definitiva da produção e comercialização da biografia não-autorizada "Roberto Carlos em Detalhes", do jornalista e historiador Paulo Cesar Araújo. O editor diz um disparate para salvar a honra, o cantor não diz nada e o autor fica proibido de dar declarações a respeito. E estamos conversados.

Estamos conversados? Não, não estamos, e tenho autoridade para dizer isso. Tenho autoridade porque, desde que publiquei meu primeiro livro, tenho sido sistematicamente atacado.

Creio que qualquer pessoa em seu juízo normal sabe que, a partir do momento em que sua carreira se torna pública, está exposta a ter sua vida esquadrinhada, suas fotos publicadas, seu trabalho louvado ou enxovalhado pelos críticos. Isso faz parte do jogo e vale para escritores, políticos, músicos, esportistas. Nem sempre essas críticas são justas e, muitas vezes, descambam para ataques pessoais.

Recentemente, um jornalista da mais importante revista brasileira disse que "Paulo Coelho não é apenas mais um mau escritor: seu obscurantismo é nocivo. Não se deve perdoá-lo pelo sucesso". Não sei o que estava propondo com essa frase, e não me interessa. Poderia alegar que minha honra está sendo atacada, que me acusa de ser um perigo para meu país, que deseja que eu seja preso. Mas vejo essas diatribes com outra ótica: elas fazem parte do jogo. A única coisa que não faz parte do jogo é a calúnia, e, pelo que me consta, isso não foi tema da ação judicial que levou à proibição de "Roberto Carlos em Detalhes".

Até hoje, desde que publiquei "O Diário de um Mago", há 20 anos, vi milhares de críticas negativas, mas apenas duas ou três calúnias a meu respeito, graças a Deus. Não me dei ao trabalho de contra-atacar porque não achei que valia a pena, embora me reserve esse direito se algo muito sério acontecer. Recentemente, em um jornal espanhol de primeiríssima linha, simplesmente inventaram uma resposta a uma pergunta a que havia me recusado responder. Claro, enviei uma carta ao diretor, e o jornalista teve que arcar com as conseqüências.

Estou pronto para defender minha honra, mas não vou perder um minuto do meu dia telefonando para um advogado e procurando saber o que faço para defender minha vida privada, já que ela não mais me pertence.

Diz o velho ditado: "Quem está no fogo é para se queimar". Eu acrescento: Quem está no fogo é para ajudar a fogueira a brilhar mais ainda. Não adianta o meu editor declarar que fez o acordo "porque o contexto era desfavorável". Ele precisa vir a público explicar qual é esse contexto -ou seja, se estamos falando de calúnia. Neste caso, tem meu apoio integral, pois calúnia é sinônimo de infâmia. Mas, caso contrário, está colaborando para que comece a se criar um sério precedente -a volta da censura.

Roberto Carlos tem muito mais anos na mídia do que eu; já devia ter se acostumado. Continuarei comprando seus discos, mas estou extremamente chocado com sua atitude infantil, como se grande parte das coisas que li na imprensa justificando a razão da "invasão de privacidade" já não fosse mais do que conhecida por todos os seus fãs.

Também continuarei sendo editado pela Planeta, pois temos contratos assinados. Mas insisto: gostaria que minha editora, dinâmica, corajosa, se instalando agora no Brasil, explicasse a todos nós, brasileiros, o que significa esse tal de "contexto desfavorável".

Desfavorável é fazer acordo a portas fechadas, colocando em risco uma liberdade reconquistada com muito sacrifício depois de ter sido seqüestrada por anos a fio pela ditadura militar.

E não entendo por que você, Paulo Cesar Araújo, "se comprometeu a não fazer, em entrevistas, comentários sobre o conteúdo do livro no que diz respeito à vida pessoal do cantor" (Ilustrada, 28/4). Não é apenas o seu livro, cujo destino foi negociado entre quatro paredes, que está em jogo. É o destino de todos os escritores brasileiros neste momento.

Não sei se vou ter as explicações que pedi. Mas não podia ficar calado, porque isso que aconteceu na 20ª Vara Criminal da Barra Funda me diz respeito, já que desrespeita minha profissão de escritor.

(Folha de São Paulo, 2.05.2007)

03/07/2005



Apaixonado por
Cuba -- ao longe


Vivendo no Canadá e escrevendo em inglês, o cubano José Latour traz da terra distante o cenário e a inspiração para seus romances

Uma das estrelas da III Festa Literária de Paraty é José Latour, autor de um dos melhores policiais lançados no Brasil este ano, "Mundos sujos". Ele se apresenta sábado, conversando sobre literatura policial com Luiz Alfredo Garcia-Roza e Marcello Fois. Nascido em Havana há 65 anos, vivendo há três em Toronto com a mulher, os filhos e a nora, Latour deve o sucesso deste seu primeiro romance escrito em inglês a um mix particularmente interessante de ingredientes, em que a uma trama original e movimentada junta-se a observação sensível de dois universos opostos. De um lado, a Havana miserável dos cubanos comuns, sem amigos poderosos, sem comida, sem fé no futuro; de outro, a Miami sem lei e sem privações, em que o consumismo alucinado tenta se impor como uma espécie de felicidade.

O autor, que já lançou mais um livro em inglês, Havana Best Friends, promete, até o fim do ano, a continuação de "Mundos sujos" -- alegria garantida para quem acompanhou as aventuras do professor Elliot Steil. No forno, tem ainda um ensaio sobre os problemas que seu país enfrentará depois do comunismo, e um romance histórico ambientado na Havana do Século XIX.

José Latour, que não consegue se afastar emocionalmente da Cuba natal, escolheu o Canadá para viver por lhe parecer o melhor dos países que conhece -- uma democracia solidamente estabelecida, onde os direitos humanos são respeitados:

-- Não há nações perfeitas -- disse, por email, para esta entrevista. -- Em toda parte há crime, corrupção e outras doenças sociais. A grande questão é descobrir com quanta imperfeição se pode viver.

Para parte da intelectualidade brasileira, Cuba continua sendo um modelo de independência, um pequeno Davi lutando contra o Golias americano. É possível uma ditadura do bem?

JOSÉ LATOUR: Inúmeros intelectuais mundo afora têm essa visão de Davi e Golias da ilha. O que eles não sabem é que o minúsculo Davi da cena mundial transforma-se num Golias impiedoso nos bastidores, uma criatura que mandou fuzilar milhares de adversários e sentenciou centenas de dissidentes pacíficos a longas penas em prisões infectas, o mais longe possível de onde vivem seus parentes e amigos, pelo "crime" de pedir eleições livres, um sistema político multipartidário, uma imprensa sem censura.

O que me deixa perplexo é que todos esses intelectuais exigem para si mesmos os direitos e liberdades que a ditadura cubana nega ao povo. Eles criticam abertamente seus governos, denunciam abusos de poder e corrupção, participam de movimentos e passeatas contra o governo. Ninguém em Cuba pode fazer nada disso.

Acredito que todos têm direito à sua opinião, mas os princípios são, ou deveriam ser, inflexíveis; de outra forma, passa-se a usar dois pesos e duas medidas. Se você acha que a liberdade de expressão é um direito humano básico e a exige para si mesmo, não deveria apoiar um regime que, em outro país, aprisiona pessoas só porque gostariam de fazer o que você faz.

Uma das grandes ironias da política cubana é que o primeiro homem que pegou em armas para lutar contra a ditadura tornou-se, ele próprio, um ditador em grande estilo. E não, não há ditadura "boa" ou "do bem".

Fala-se muito na excelência dos sistemas de educação e saúde cubanos, mas mesmo eles não se salvam incondicionalmente no seu romance "Mundos sujos". Como é a realidade em Cuba para os cubanos comuns, aqueles que não têm padrinhos políticos?

LATOUR: Alguns adversários do comunismo cubano recusam-se a admitir conquistas, e isso acaba funcionando contra eles. Nenhum governo consegue ser totalmente mau e injusto, ou integralmente bom e correto. O que Cuba conseguiu nos campos da educação e da saúde pública nos últimos 40 anos é o sonho de todo o Terceiro Mundo. Sim, a educação é de uma servidão ideológica chocante, mas nenhuma criança cubana fica sem escola ou professor. Sim, faltam remédios e os hospitais têm carência de tudo, de equipamentos de Raio-X a reagentes químicos para análises clínicas, mas o mais remoto vilarejo cubano conta com um médico que pode chamar uma ambulância e remover seus pacientes para o hospital mais próximo. Oferecer educação e atendimento médico gratuitos a todos os cidadãos é excelente. Privá-los do exercício de seus direitos civis, porém, é altamente perverso, pois os transforma em escravos. Saudáveis e educados, sim, mas escravos.

A percepção que se tem, por livros como "Mundos sujos" ou filmes como "Guantanamera", é que pequenos delitos e roubos na agências governamentais institucionalizam-se num país onde, freqüentemente, não se ganha o suficiente para sobreviver. Esta é a mesma percepção que me dão, aliás, filmes e livros que têm por cenário a antiga União Soviética. É um tipo diferente de roubo daquele que se vê no Brasil, onde a corrupção é generalizada, mas onde roubar da repartição não chega a ser propriamente uma necessidade vital, de modo que você ainda pode se dar ao luxo de ser uma pessoa honesta, se assim o desejar.


LATOUR: Assim como em tantas economias de mercado há homens de negócios que lutam por lucrar cada vez mais, de todas as maneiras possíveis, éticas ou não, na ilha -- dada a indiscutível falência econômica do sistema -- a maioria dos funcionários públicos tenta trabalhar o mínimo e roubar o máximo possível. Este problema atinge hoje tais proporções que a população não percebe mais o roubo de bens do Estado como um crime passível de punição. Médicos, dentistas e enfermeiros roubam remédios, comida e roupa de cama. Operários roubam cimento, madeira e areia. Professores e burocratas roubam papel, canetas e peças de computador. Ladrões de gado abatem entre 20 mil e 30 mil cabeças por ano.

Se todo mundo que rouba ou já roubou alguma coisa fosse para a prisão, provavelmente metade da população estaria encarcerada.

Fiquei muito impressionada com a falta de solidariedade e apoio aos dissidentes cubanos presos por Fidel Castro recentemente. Há alguma explicação racional para isso?

LATOUR: Na minha opinião houve solidariedade e apoio, sim, ainda que não tanto quanto eu teria gostado de ver. Talvez uma das razões para a pouca repercussão deste apoio esteja, justamente, naquela visão de Davi e Golias que discutimos antes, e no papel dos intelectuais de esquerda como formadores de opinião. A outra razão, com certeza, é que a única coisa que realmente funciona bem em Cuba é a propaganda. Assim que os dissidentes foram presos, a máquina entrou em funcionamento, espalhando que eles eram agentes do governo americano. O problema é que algumas pessoas são tão ingênuas que conseguem acreditar numa besteira dessas.


A sociedade cubana que o senhor retrata é um lugar de alta periculosidade para os que insistem em pensar por si mesmos. Mas o outro lado do espelho, ou seja, os cubanos de Miami, também não são pintados com boas tintas em "Mundos sujos". Nenhuma das opções o agrada. O que o senhor acha que vai acontecer em Cuba quando Fidel morrer? Há alguma possibilidade de que, no futuro, olhando para trás, as pessoas sintam saudades dos "bons velhos tempos" do castrismo?

LATOUR: As pessoas não me desagradam. Nem em Cuba, nem nos Estados Unidos, nem em lugar algum. Acredito piamente que, em todos os países, 90% das pessoas são gente direita e trabalhadora. Mas, entre os 10% restantes, encontramos uns tipos realmente asquerosos: políticos com sede de poder, criminosos, ladrões, falsários, torturadores...

Quando nós humanos olhamos para trás, podemos ver cinco mil, dez mil ou mesmo um milhão de anos do passado. Mas, quando tentamos olhar para a frente, ninguém pode prever sequer o que vai acontecer amanhã de manhã.

Estou publicando um breve um ensaio a respeito das questões com que a sociedade cubana vai ter de lidar depois do comunismo, mas não faço idéia de quando isso acontecerá. Acontecerá, porém, seguramente. O sistema está política e moralmente corroído, não funciona. Não funcionou na União Soviética e em nenhum país europeu. A China e o Vietnã estão fazendo progressos econômicos porque nesta área, especificamente, deixaram de ser países comunistas.

Naturalmente, alguns cubanos vão sentir falta do comunismo. Isso ainda acontece na Rússia, onde milhares de cidadãos continuam adorando Stalin. Mas o primeiro governo não comunista de Cuba vai ter que tomar um cuidado enorme em certas áreas, como emprego, educação, saúde pública, impostos e política monetária, por exemplo, para não alienar mais pessoas do que aquelas que inevitavelmente lamentarão os novos tempos.

Por melhor que se desenvolvam a democracia e a economia de mercado numa Cuba pós-comunista, meu palpite é que uns 15% ou 20% da população, sobretudo entre os mais velhos e os menos educados, mais todos aqueles que sempre se deram bem lambendo as botas do ditador, vão sentir muitas saudades dos "bons velhos tempos".

Como o senhor conseguiu sair de Cuba? O senhor pretende voltar a viver lá? Do que sente mais falta?

LATOUR: Tenho a impressão de que certas pessoas ficaram contentes com o fato de eu pedir permissão para viajar com a minha família toda, e instruíram os burocratas nos lugares certos a me deixar sair. De modo que não houve nada aventuroso ou perigoso na minha saída da ilha. Vou decidir se volto ou não quando a ditadura comunista desmoronar. Acho que o que mais falta me faz é a minha cultura, no sentido mais amplo da palavra. Cultura como a mistura de uma infinidade de coisas, não apenas música, literatura ou pintura, mas um camponês cultivando o seu pedacinho de terra, uma mulher bonita a caminho do trabalho, o motorista do ônibus fazendo piadas, o cheiro do pão fresco, e centenas de outras coisas -- sons, vistas, cheiros, gostos. Instruí meu filho e minha filha a espalharem minhas cinzas ao largo de Havana, caso eu morra antes do fim do comunismo.

O senhor continuará a escrever em inglês? É muito difícil escrever numa língua na qual não se cresceu?

LATOUR: Sim, continuarei a escrever em inglês, e sim, é muito difícil fazê-lo! Aprendo novidades a cada dia. Tive que comprar, e consulto constantemente, o Chicago Manual of Style, o último Roget's Thesaurus, o Webster. Felizmente a gramática e a sintaxe do inglês não são tão complicadas quanto as do espanhol.

O senhor está trabalhando atualmente em algum livro novo? Ele será também ambientado em Cuba?

LATOUR: Agora em novembro sai um novo romance meu nos Estados Unidos, uma continuação de "Mundos sujos". Talvez seja publicado também no Brasil, vamos ver. Em breve publicarei o ensaio sobre Cuba de que falei antes; e estou escrevendo um novo romance, ambientado na Cuba do Século XIX. É o meu primeiro romance histórico, e estou muito entusiasmado com ele. Ah, esquece: eu sempre fico entusiasmado com o novo livro que estou escrevendo.

(O Globo, Segundo Caderno, 3.7.2005)