29/05/2003

Culpa da imprensa?

Zuenir Ventura


Não são poucos os leitores que crêem na hipótese de que a violência no Rio é, em grande parte, uma construção virtual da imprensa, uma espécie de reflexo amplificado de seus exageros. Quando se viaja, então, a pergunta é inevitável: “por que vocês só falam de violência?”. Numa cidade do interior, um jovem repórter insistiu para que eu, em nome do jornalismo, assumisse a responsabilidade pelo medo que nos cerca. Como se já não bastasse o casal Garotinho repassando a culpa de tudo para a mídia.

Anteontem, uma leitora indignada escreveu para O GLOBO perguntando até quando o Rio seria “massacrado pela propaganda da violência”. Ela citava o exemplo de sua empresa, e de outras que estavam sendo prejudicadas pelo que considera ser uma distorção da imprensa local, que ignora o que de ruim se passa em outras cidades para se concentrar nas baixarias daqui. Gaúcha morando no Rio há cinco anos, ela contava: “Ando num carro importado que não é blindado, com pulseira de ouro e tudo a que tenho direito, e afirmo que nunca fui assaltada.”

Um testemunho animador. Mas inúmeros outros podem se contrapor a ele. De qualquer maneira, dei uma olhada no jornal para ver se do que fora publicado havia o que não fosse notícia ou tivesse recebido destaque inadequado. É verdade que nos últimos dias — e não só — os fatos policiais predominaram no noticiário. Na nossa primeira página, Rosinha e Chiquinho confraternizam numa grande foto, enquanto o texto fala do escândalo em que o secretário é acusado de proteger o tráfico na Mangueira.

Nas páginas de dentro, mais notícias relacionadas com violência. De um lado, a matéria do juiz barbaramente espancado e torturado por jovens bandidos de classe média. Mais adiante, o enterro da estudante morta numa falsa blitz. Embaixo, o incidente dos quatro pitboys que agrediram freqüentadores de uma boate gay, espancaram dois guardadores de carros e desafiaram PMs. Ontem, a manchete era o crime brutal, hediondo, “infame”, como disse o ministro Gil, de Almir Chediak. Exagero? Onde está o excesso — nos relatos ou na própria realidade?

Cada um dos acontecimentos noticiados correspondia a um sentimento real — um susto, um choque, um grito de dor. Se a imprensa não pode alarmar, não deve, por outro lado, perder a capacidade de se espantar. Tem de evitar o pânico, mas também a anestesia, a resignação, a desistência de se indignar. Não pode, enfim, aceitar como natural o absurdo que é a violência.

(O Globo, 28.5.2003)

15/05/2003









Laranjinha

Fêmea castrada, vacinada e vermifugada. Porte pequeno/médio, 1 ano.

Extremamente dócil e meiga, com aquele olhar de "olhe pra mim; estou aqui!".

Foi encontrada correndo e atravessando as movimentadas ruas de Botafogo.

Medrosa, mas com certeza só até se sentir segura em novo lar; seu porto seguro.

Espera uma adoção consciente para poder dar muito carinho e amor incondicional à sua nova família.

Para saber de mais detalhes, favor contactar Márcia pelos telefones (21) 2543-3839 e 9963-9919.

14/05/2003





Dar nome aos bois

Alberto Dines


Não adianta, ilusão tem limites: em algum momento a econometria vai esbarrar na realidade. Economia não é abstração. Os C-Bonds, o risco país, a taxa de câmbio e as demais medições estão sendo aplicadas num processo artificial - como nos laboratórios onde as experiências ocorrem em condições ideais, sem as interferências do ambiente.

Era inevitável a contaminação do noticiário político pelo noticiário policial e a conjugação das estatísticas de crimes com as cotações das páginas econômicas. Os manuais e ritos corporativos não permitiram. Mas isso acaba de acontecer no âmbito da imprensa internacional, obrigada a enxergar o país como um fenômeno integrado, sem segmentações aleatórias. Não é coincidência que, nos últimos dias, o New York Times, a BBC-World, o Wall Street Journal e o Economist - os dois últimos com influência mundial na esfera da economia e dos negócios - tenham dedicado bom espaço e bom tempo para tratar da escalada de violência que grassa no país.

Incorremos em outro perigoso engano quando evitamos dar o nome aos bois e nos refugiamos em classificações minimalistas e fictícias. Estamos diante de uma insurreição generalizada, pré-guerra civil. Crime organizado é conversa fiada. Balela. O nome correto é narcoterrorismo.

Os horrores dos anos de chumbo excluíram do vocabulário jurídico os atentados à segurança nacional e agora estamos pagando um preço altíssimo pelos eufemismos e maneirismos lingüísticos que nos impedem de enxergar os problemas nas suas verdadeiras dimensões. A violência federalizou-se e o combate à violência, com ou sem intervenção formal, com ou sem as Forças Armadas nas ruas, deve federalizar-se. Aberta e ostensivamente. Em todas as esferas, inclusive das relações internacionais. As Farc já não podem ser tratadas com punhos de renda, o Complexo da Maré começa no fundo da Baía de Guanabara e termina nas selvas da Colômbia.

Cada vítima, cada violência, cada susto, cada insulto cívico e cada agressão ao Estado de Direito infligido pelo poder-bandido nos lembra que estamos diante de uma emergência federal. Na última terça-feira, o eixo rodoviário Norte-Sul foi seccionado pelas incursões na Linha Vermelha, Linha Amarela e o controle da Avenida Brasil, no Rio. Não são ocorrências paroquiais, metropolitanas ou estaduais; são situações de risco nacional. Esta é uma verdade que precisa ser encarada de frente, com a designação apropriada.

As reconciliações entre dona Rosinha e dona Benedita, as festinhas entre o coronel Bolinha e seus desafetos, além de ridículas, são um ultraje à memória dos caídos e dos humilhados pela Confederação da Violência. Os sorrisinhos cínicos e os tapinhas nas costas na véspera dos funerais de uma sociedade livre flagram a falta de compostura e escancaram a impostura.

O Morro do Turano não é distrito urbano, é agora distrito federal. O atentado (premeditado, conforme evidenciou-se) contra a Universidade Estácio de Sá não cabe num B.O., Boletim de Ocorrências. Merece uma C.R.I, Constatação de Ruptura Institucional.

Quando o governador de fato, Anthony Garotinho, reconhece que perdeu o controle da situação e o ministro da Justiça, no Observatório da Imprensa (terça ultima, pela TV E), diante de uma pergunta da jornalista Dora Kramer, admite constrangido que daria nota cinco ao desempenho das autoridades do Estado do Rio em matéria de segurança, já não há como disfarçar a etiquetagem e a dimensão do desastre.

Essa dimensão não é apenas factual, é conceitual. Quando alguns senadores decentes, como Pedro Simon e Jefferson Peres, propõem que se rasgue o Código de Ética e se dissolva a Comissão de Ética diante da decisão do presidente do Senado de arquivar o processo contra ACM, o Rei do Grampo, percebe-se a imantação moral entre a degradação da lei e da ordem no Rio de Janeiro e a degradação dos costumes políticos nas altas esferas da República.

Quando o PT majoritário - o partido da esperança e da mudança - capitula diante desse ultraje, preocupado com a maioria para aprovar reformas que sempre combateu, delineia-se um vale-tudo político-partidário que explica inclusive a complacência federal com o Casal Governador do Rio de Janeiro que tantas lágrimas e estragos tem custado.

Quando o pseudo-oposicionista PSDB permite que o senador Tasso Jereissati articule abertamente o apoio para proteger os amigos-parceiros ACM e Sarney, numa das manobras mais sórdidas da recente crônica parlamentar, evidencia-se que o partido precisa trocar de nome. Deve deixar de lado o SD (da Social-Democracia) e denominar-se apenas PB, Partido Banana - desfibrado, desossado e emasculado.

Esta é a hora de dar nome aos bois. Antes que os bois irmanados, saneados, risonhos e politicamente corretos, pisoteiem o que sobrou em matéria de decência e coragem.

(Jornal do Brasil, 10.5.2003)