09/01/2012

Geraldo Carneiro: o ritmo acelerado do poeta mineiro





2011 foi um ano movimentado para o poeta Geraldo Carneiro. Ele traduziu o que define como uma versão redux de Romeu e Julieta, chamada “RJ de Shakespeare”, que estréia essa semana em São Paulo depois de uma vitoriosa carreira carioca; escreveu para a Globo, com Alcides Nogueira, a novela “O astro”, baseada na obra de Janete Clair; a pedido de Daniel Filho, fez as introduções para os 16 episódios de “As brasileiras”; apresentou-se com a atriz Mariana Ximenes pelo Brasil afora, numa série de palestras que vão virar DVD; adaptou “Gota d’água”, a peça de Paulo Pontes e Chico Buarque, para o cinema, a pedido de Roberto Talma; lançou seu segundo CD, “Gozos d’alma”, pela Biscoito Fino; e começou alguns projetos que serão terminados em 2012, entre eles o roteiro cinematográfico de “A casa dos budas ditosos”, a quatro mãos com o autor e grande amigo João Ubaldo Ribeiro, e “Discurso do amor rasgado”, livro em que celebra seus trinta anos de convívio com Shakespeare, e que será publicado pela Nova Fronteira. Tudo isso fora o varejo de canções e poemas, que brotam naturalmente, sem esperar ocasião.

É muita coisa para um poeta só, mas o tempo e o trabalho fazem bem a Geraldo Carneiro, casado desde 2008 com sua linda musa Ana Paula Pedro. Ele reclama em tom de troça da decrepitude física e metafísica, mas mudou espantosamente pouco desde que começou a aparecer, ainda adolescente, no cenário da música brasileira.

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No front doméstico, o ano não foi menos intenso. Em fevereiro nasceu o primeiro neto, Santiago, filho do filho mais velho, Joaquim (30 anos); e, quatro meses depois, veio ao mundo Vinícius, o filho mais novo. (Antonio, o do meio, tem 14 anos). Como costuma acontecer com bebês, ainda mais quando são dados e risonhos, Vinícius é o rei da casa.

-- O Vinícius é um carnavalesco, vai no colo de todo mundo, acha a maior graça, gosta de tudo. Parece o velho Vinicius. Quando nós escolhemos este nome para ele, fiquei rindo durante um mês, porque nunca imaginei que um ser tão pequenininho pudesse ter o mesmo nome daquele outro Vinicius, que foi tão importante na minha vida. Ele gravou uma música minha quando eu ainda era menino, acabei escrevendo a primeira biografia dele e fomos muito amigos, ainda que no começo eu o olhasse com um certo cuidado, porque o achava licencioso, libertário demais. Eu me sentia meio careta ao lado dele, e olha que para eu me sentir meio careta nos anos 70 era complicado... Ele era muito doido. O Vinicius me inspirava sentimentos paradoxais: amor, admiração, inveja. Era de um carinho extraordinário, me ensinou a fazer coisas impublicáveis! Lamento ter tido em relação a ele aquela tendência parricida que as gerações mais novas têm em relação às gerações anteriores, lamento não ter convivido com ele da forma amorosa que ele propunha, eu mantinha um olhar crítico, ia à casa dele, ficamos amigos, mas nunca chegamos a ser realmente íntimos.

O convívio entre Geraldo e o Vinícius pequeno foi afetado pelo trabalho na novela, mas de forma positiva: como atravessa as madrugadas escrevendo, ele pode observar a evolução do filho num horário em que poucos pais estão acordados. Entre uma cena e outra de “O astro”, acompanhava as mamadas e resmungos noturnos do seu bebezinho. No momento, as madrugadas estão menos longas, mas não menos produtivas. Vinicius dorme, enquanto o pai trabalha em novos roteiros e escreve sobre os 60 anos que fará em junho. Idade que, como sabem todos que chegaram lá, parece muito distante até o momento em que bate à porta.

-- Todo mundo conta que, quando vai para a fila especial, acha que os outros vão ficar indignados, mas que nada, todos acham perfeitamente natural aquele cara lá... (risos) Estou me enchendo de trabalho para afastar o espectro que ronda os sexagenários. Aliás, que palavra horrível, implica uma série de trocadilhos... Mas não posso me queixar. Estou num momento apaziguado e feliz. Há guerras dentro de mim, mas são guerras de aperfeiçoamento, não guerras de destruição. E tenho me cansado tanto de trabalhar, que tenho sonhado muito com aquelas coisas de um ser humano padrão, aquele ser humano que quer se alimentar e dormir, em suma, certos prazeres da existência aos quais eu nunca tinha prestado atenção, e que, por força das circunstâncias, estão me parecendo espetaculares. Jantar, dormir, uma vida pacífica... quem diria!

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Geraldo Carneiro nasceu em Belo Horizonte, mas mudou-se para o Rio aos três anos, quando o pai, secretário de Juscelino Kubistchek, veio para a então capital. Pelo apartamento da família, em Copacabana, políticos, músicos e escritores circulavam com a mesma desenvoltura, o que acabou marcando a sua infância e a dos irmãos, o músico Nando e a historiadora Elizabeth.

A música, quase uma segunda natureza, começou cedo. Seu primeiro parceiro, ainda na adolescência, foi Eduardo Souto Neto. Os dois compuseram juntos “Choro de nada”; Vinicius de Moraes gostou, decidiu gravar, mas achava que precisava mudar um verso. O final original era “Retomo o rumo de casa / Com um sorriso nos olhos / Você não sabe de tudo / Você não sabe de nada”; Vinicius queria “Retomo o rumo de casa / Com a alma reconfortada / Você não sabe de tudo / Você não sabe de nada”. Com a arrogância dos 18 anos, Geraldo não permitiu. E foi embora para Roma, trabalhar com Astor Piazzola num musical sobre Evita Peron que acabou não saindo. Enquanto estava por lá, recebeu uma cartinha gentil de Eduardo, que contava que a canção havia sido gravada – sem entrar em detalhes. Na volta ao Rio, meses depois, é que descobriu que a mudança de verso havia, afinal, sido feita.

Mas a história dessa música, até hoje uma das suas letras mais conhecidas, não acaba aí. Passaram-se três ou quatro anos, e Tom Jobim também quis gravá-la, junto com Miúcha... mais uma vez trocando o verso da discórdia! Dessa vez ficou “Retomo o rumo de casa / Na noite desconsolada / Você não sabe de tudo / Você não sabe de nada”. “Choro de nada” só foi gravada com a letra original no ano passado, por Danilo Caymmi, para o CD “Gozos d’alma”.

De “Choro de nada” até hoje foram mais de 200 canções, em parcerias com o irmão Nando, com Egberto Gismonti, com Astor Piazzolla, com John Neschling, com Francis Hime, com Wagner Tiso. E, desde então, os seus versos foram deixados em paz.

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Vendo o mundo da sua infância e juventude pelos olhos de hoje, Geraldo Carneiro não alimenta falsas ilusões. O planeta era mais instável e, com certeza, bem mais explosivo:

-- Você se dá conta de que, quando nós éramos crianças, o mundo podia ter acabado? A crise dos mísseis, em 62, foi o preâmbulo do apocalipse. Depois, em 64, veio a ditadura militar, vivemos momentos muito difíceis. Agora, embora as pessoas não se dêem conta, estamos vivendo um momento particularmente feliz. Há uma distensão social, uma tolerância, uma aceitação da alteridade... Há conquistas do Século XX que entraram com força pelo Século XXI. Veja a Primavera Árabe, que coisa maravilhosa, quem teria imaginado isso? Claro que tudo é muito precário e pode acabar da noite para o dia, e os dinossauros vão para as cucuias. Nós, os novos dinossauros, podemos ter o mesmo destino. Mas é bom não perder de vista as coisas boas quando estão acontecendo. O mundo é cheio de descontinuidades, mas tomara que haja uma continuidade nesses processos.

-- Isso, claro, se a profecia dos maias não se concretizar e o mundo não acabar em 2012...

-- Ah, os maias não têm muito prestígio profético aqui no Rio não. Cesar Maia, Rodrigo Maia... o Dem está por baixo. (risos)

Geraldo Carneiro não espera um mundo muito diferente para o bebê Vinícius. O maior temor atual, o de um apocalipse ecológico, não o assusta: ele se agarra a uma “teoria ridícula” que, dada a devida licença poética, é até engraçada:

-- Wall Street fica ao nível do mar. Quando o mar subir dez centímetros e molhar o sapatinho daqueles executivos – aqueles sapatos caros, que eles compram em Londres – eles param instantaneamente de mexer com as empresas poluidoras. Então você tem um controle quase imediato da situação, graças aos sapatos londrinos de Wall Street. Não é uma boa teoria?

Do ponto de vista científico, certamente não, mas como pouca gente se entende mesmo sobre as causas e conseqüências do aquecimento global, ela é, provavelmente, uma teoria tão boa quanto outra qualquer. De qualquer forma, ela mostra uma das facetas mais divertidas do poeta: seu talento extraordinário para a conversa fiada, para o bate-papo sem compromisso que, viva ele!, sempre foi a marca registrada dos bons cariocas.


(O Globo, Rio, 8.1.2012)