O árduo caminho do bem
Vera Cordeiro conta como levou o Saúde Criança, nascido numa cavalariça desativada, ao topo das ONGs
Ela se auto-define como “pedinte internacional”, e nessa qualidade viajou para Seattle, na semana passada, a convite da Fundação Bill & Melinda Gates, para expor o trabalho do Saúde Criança diante de 300 líderes da filantropia mundial. Este começo de 2012 anda movimentado para a Dra. Vera Cordeiro: de acordo com um ranking da revista suíça Global Journal divulgado há poucos dias, a sua instituição está em primeiro lugar entre as organizações sociais brasileiras, e em 38º entre as cem melhores do mundo. Os critérios utilizados para a seleção foram inovação, impacto, eficiência, estratégia, gerenciamento de finanças, transparência, sustentabilidade e reconhecimento – uma vitória e tanto para um projeto que nasceu numa cavalariça desativada.
Por que “pedinte internacional”? Porque, por incrível que pareça, boa parte dos recursos do Saúde Criança vem do exterior, onde a associação é mais conhecida do que no Brasil. Ela já recebeu mais de vinte prêmios internacionais e, mais importante, foi selecionada pelas duas principais fundações mundiais de apoio ao ativismo social, a Ashoka e a Skoll Foundation, que lhe deram ampla visibilidade no mundo das ONGs -- sigla que anda tão maltratada, aliás, que começa a ser rejeitada por quem trabalha com seriedade.
-- Eu sempre preciso explicar que a Skoll Foundation não tem nada a ver com a cerveja – diz Vera. – Seu fundador, Jeff Skoll, foi o primeiro funcionário do eBay. Ficou bilionário e em 1999, aos 41 anos, decidiu mudar o mundo. Como fazer isso? Procurou Bill Drayton, fundador da Ashoka e principal referência em filantropia, e recebeu o conselho de criar uma fundação que apoiasse empreendedores sociais.
Até hoje, apenas 85 ONGs foram premiadas pela Skoll Foundation. Pois em 2006, uma emocionadíssima Vera Cordeiro recebeu o prêmio das mãos de Robert Redford. Já Bill Drayton acha que há pessoas que tem, no campo social, o mesmo talento que um Bill Gates ou um Eike Batista têm no campo dos negócios, e que essas pessoas devem ser identificadas e apoiadas para ampliar o seu impacto na sociedade. Os dirigentes de ONGs que se enquadram nos severos critérios da Ashoka tornam-se fellows da fundação. Segundo uma clássica definição de Drayton, eles não dão o peixe nem ensinam a pescar, mas lutam para transformar toda a indústria da pesca. Tanto a Ashoka quanto a Skoll Foundation realizam encontros entre os ativistas que apóiam, transferem know-how entre eles e servem como importantíssimos cartões de visita para a captação de recursos.
Como é que uma modesta associação carioca, tocada por voluntárias, foi parar no concorrido mundo da elite do ativismo social? Quando se conhece a Dra. Vera, é fácil entender essa trajetória. Aos primeiros minutos de conversa, fica claro que essa mulher bonita, muito mais jovem do que os seus 61 anos, é uma pessoa determinada, movida pela paixão. Sua dedicação ao projeto é tanta que, nos primeiros tempos do Saúde Criança, os fundos vinham de rifas que ela fazia do que quer que encontrasse sobrando em casa. As filhas às vezes se desesperavam: “Meu tênis novo não, mãe!” Mas, quando ela convertia o valor de um Reebok em latas de leite em pó, a ação social falava mais alto do que as vozes das meninas.
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Tudo começou no Hospital da Lagoa. Casada com Paulo, que trabalhava na IBM, e mãe de Marina e Laura, ela comparava a sua realidade com a das mães que chegavam ao hospital, e ficava extremamente angustiada:
-- Minha vida era uma loucura, -- diz. – Um dia eu estava em Lake Tahoe esquiando com meu marido e minhas filhas, e no dia seguinte estava no hospital, onde uma mãe trazia o filho para amputar a mão porque havia tomado o soro errado numa trambiclínica. A mãe dizia: eu entendi que tem que amputar. Mas a senhora tem um emprego para me arrumar? Uma outra vez, um colega me chamou para ajudar na quimioterapia de uma criança de sete anos. A mãe era uma pessoa da minha idade, muito envelhecida, com outros nove filhos além daquele com câncer renal. Eu tinha que ajudar aquela mulher a entender o que a criança ia passar. Depois que expliquei tudo, a mãe me disse: Tudo bem, doutora, entendi. Mas a senhora tem um lençol velho para me dar? Porque eu não tenho agasalho para o meu filho, e venho de Juiz de Fora para ele fazer a quimioterapia, que lá não tem. Ou o caso da criança que tinha má absorção, e que precisava tomar um leite muito caro: Doutora, a senhora cria o meu filho? Eu não tenho como criar, ele vai morrer. Ou ainda o menino com síndrome nefrótica, que era internado e tratado, ficava bom, e os remédios que ele precisava tomar eram devidamente prescritos; mas o pai era alcoólatra e a mãe tinha uma deficiência mental, e logo ele estava de volta ao hospital. Um dia, depois de muitas internações, ele não resistiu e morreu. Num país de primeiro mundo esse menino não teria falecido.
Vera percebeu que estava diante de um ciclo vicioso: miséria, internação, alta, reinternação e morte. Como médica, conseguia tratar a doença aguda, mas isso era pouco diante do problema real. Segundo a OMS, a causa de um terço das mortes no mundo é a pobreza -- e ela se deparava com essa causa diariamente. Não podia mais conviver com aqueles casos, e chegou à conclusão de tinha que sair do hospital para tratar, de fato, dos seus pacientes.
-- Eu precisava tratar também do lado psicossocial da doença, porque o adoecer é biopsicossocial, mas a medicina tradicional trata apenas do bio, -- observa. -- E do psicossocial, quem trata? Devia ser o governo, mas mesmo governos ótimos, como o do Canadá, não dão conta disso sozinhos. Mesmo que não houvesse corrupção no Brasil, o governo não daria conta, porque saúde não é só curar uma doença, saúde é tudo. Às vezes uma criança é internada com pneumonia ou tuberculose mas, se você for ver as condições de moradia dessa criança, vai constatar que qualquer um teria tuberculose lá, porque chove dentro da casa, não tem comida... A real causa das doenças, no mundo em desenvolvimento, ou na sua parte menos favorecida, é a miséria. São os profissionais da saúde que vêem, de perto, as conseqüências da trágica distribuição de renda no país. E vêem de pés e mãos atados.
Corria o ano de 1991. Vera juntou um grupo quixotesco de vinte voluntárias, e se estabeleceu num espaço que ocupava parte das antigas cavalariças do Parque Lage. Era lá que trabalhavam as voluntárias que, desde a época do presidente Dutra, costuravam roupinhas para as crianças do Miguel Couto. A líder deste grupo era amiga da mãe de Vera, e ofereceu abrigo para o novo projeto.
-- Fui conversar com o Betinho, que nos deu todo o apoio possível, -- lembra Vera. -- Nós precisávamos desesperadamente de dinheiro. Os padres, que eram os únicos que nos davam bola naquela época, diziam: “Vocês tocam o sagrado, crianças pobres doentes, Deus vai ajudar”. Tudo bem, padre, mas com que dinheiro? “O dinheiro há de vir”.
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A estrutura inicial da organização era, basicamente, um armário com remédios e comidas -- mais o motorista da família, que em tese deveria levar Marina e Laura para o curso de inglês, mas era desviado por Vera para incursões às favelas, para checar as condições de vida das famílias atendidas. Os amigos começaram a fugir. Eles sabiam que, se ela ligasse, não era para ir ao cinema ou para bater papo, mas para pedir donativos. O pior é que, mesmo no hospital, o projeto era visto com reservas, como se fosse um hobby de senhoras entediadas.
A idéia do Saúde Criança, que então se chamava Renascer (nome descartado há dois anos para evitar confusões com a igreja evangélica), era atacar a miséria em várias frentes. Além dos cuidados com a saúde das crianças, o grupo conseguia documentos para as famílias, oferecia treinamento profissional para mães e pais e reformava as casas para garantir condições mínimas de moradia.
-- Fiquei meio apavorada no começo, -- diz Vera -- Volta e meia chegavam pacientes direto da Rodoviária Novo Rio perguntando “É aqui que dá emprego, comida e remédio?” Logo ia se espalhar que havia uma médica maluca no Parque Lage tentando salvar o mundo...
Não foi um começo fácil. Em pouco tempo, os vizinhos implicaram com o vaivém de miseráveis e retomaram as cavalariças. As voluntárias mudaram-se então para uma estrutura menor, o antigo galinheiro de Gabriela Bezansoni-Lage. Vera conseguiu que o Banco Icatu o reformasse – mas, quando as obras estavam pelo meio, foram embargadas. Os vizinhos haviam entrado na Justiça, queriam que o Saúde Criança saísse de vez do Parque Lage. Vera não se deu por vencida. Alugou um trailer, e passou a tocar o projeto de lá.
-- Foi uma época terrível, -- lembra ela. – Um dia, fui à Barra da Tijuca para consultar a arquiteta que estava fazendo as obras. Ela me disse que não podia fazer nada enquanto o embargo vigorasse. Nós estávamos trabalhando dentro de um trailer, não tínhamos dinheiro, tudo era uma luta. E eu voltei da Barra dirigindo e brigando com Deus. Deus, eu dizia, se você não ajuda mais criança pobre doente, você pode me explicar o que é que Deus faz? Para que serve Deus? Qual é a sua job description? Não estou com paciência para Deus! Quero que o senhor me diga se eu devo continuar lutando para permanecer no Parque Lage ou se eu desisto de tudo. Mas eu quero uma prova cabal, entendeu, Deus? Ora, naquela época, eu tinha mandado fazer cem plásticos que diziam Renascer -- Grupo de Apoio à Criança e ao Adolescente, e que distribui entre os amigos. E, assim que chamei Deus às falas, um carro com esse plástico colado na janela de trás ultrapassou o meu. Não é que Deus responde? Mais tarde, quando consultei o I-Ching, também recebi uma resposta muito positiva. Dizia: “Após diversas batalhas, a vitória está garantida”. Pois olha, quatro meses depois, d. Ruth Cardoso estava inaugurando a nossa sede, construída onde era o antigo galinheiro.
Antes disso, animada pela resposta divina, Vera saiu batendo em todas as portas até chegar ao Palácio da Alvorada, onde foi expor a situação ao presidente Fernando Henrique Cardoso. O Parque Lage é federal, e só ele podia ajudá-la na briga com os vizinhos. Pouco depois, ele assinou um decreto garantindo a permanência do Saúde Criança no seu cantinho.
Em 1993, Vera deu um dos passos mais importantes para a sustentabilidade do Saúde Criança: candidatou-se a fellow da Ashoka. Foram nove meses de entrevistas. Finalmente, ganhou uma bolsa mensal de U$ 650 – mas, mais importante do que isso, ganhou uma vitrine mundial para o seu projeto. A Ashoka passou a mandá-la para todos os fóruns de ativismo social, para que apresentasse o Saúde Criança e fizesse contato com outras pessoas que, como ela, estavam tentando melhorar o mundo.
-- Uma vez, apresentei o nosso projeto para 200 consultores da McKinsey. Quando terminei, todos aplaudiram de pé... e eu desatei a chorar. Até então só tinha tido dificuldades, estava sendo expulsa do Parque Lage e, de repente, era compreendida.
O resto, como se diz por aí, é história. Desde a sua fundação, o Saúde Criança já ajudou mais de dez mil crianças e mais de 2.800 famílias. Juntas, as 23 organizações que copiaram seu modelo em outros estados apoiaram mais de 40 mil pessoas. Os resultados são excelentes: o índice de reinternação das crianças assistidas cai em média 65%, e a renda das famílias aumenta cerca de 40%.
-- Quando me perguntam qual é o objetivo do Saúde Criança, eu respondo que é transformar miseráveis em pobres, -- diz Vera.
Os números lhe dão razão: é preciso começar pelo começo.
(O Globo, Rio, 5.2.2012)
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