O sotaque português de um bistrô carioca
Um dia, os amigos Chico Mascarenhas e Ricardo Guimarães estavam jogando poôquer com as mulheres, Maria Cristina, a Tintim, e Priscilla. A certa altura, Ricardo reclamou de fome e Chico, que sempre cozinhou, resolveu fazer uma comidinha. Pois a comidinha ficou tão boa, mas tão boa, que, no ato, os dois resolveram abrir um restaurante. Arranjaram um ponto na Gávea, juntaram os nomes Guimarães e Mascarenhas, e o resto, como se diz por aí, é história: aos trinta anos, completados no outro sábado, o Guimas é um dos mais queridos restaurantes do Rio. Até hoje, aos domingos, a clientela encara filas homéricas, sem reclamar.
-- Nós inovamos na comida, -- diz Chico, sem falsa modéstia. -- Há um porquê meio matreiro nisso, que depois eu conto; mas inovamos também num outro detalhe. Fomos um dos primeiros restaurantes em que o dono era amigo dos clientes. Antes o dono era, tipicamente, um espanhol que ninguém conhecia.
Taí um pecado do qual ninguém podia acusar o luso-carioca Chico. Nascido em Lisboa há 63 anos, fotógrafo e bom-vivant, ele era conhecido em todas as rodas boêmias da Zona Sul; nada mais natural que seu restaurante virasse ponto de encontro dos companheiros.
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Chico chegou ao Rio aos 15 anos, acompanhando os pais e os quatro irmãos. O pai, Domingos Mascarenhas, era diplomata, e vinha tentar mudar a percepção que aqui se tinha do Portugal salazarista. Quando a família seguiu em frente, o filho do meio ficou para trás, encantado com a cidade; mas nem todas as maravilhas cariocas foram suficientes para segurá-lo quando a ditadura começou a pôr as manguinhas de fora.
Uma noite, nos idos de 1971, Chico foi preso na Real Grandeza. Nada demais: estava sem documentos, usava jeans e cabelos compridos. Pela ótica militar da época, era um elemento suspeito. No quartel ouviu ameaças dos policiais e, assim que se viu livre no dia seguinte, decidiu ir embora. Ele tinha direito a uma passagem por conta do Ministério das Relações Exteriores de Portugal; ligou para o pai, que a essa altura estava em Moçambique dirigindo um jornal, e logo estava a caminho de Lisboa, onde passou a ocupar o apartamento da família.
No Rio, estudara fotografia e trabalhara como assistente do professor. Volta e meia sobrava uma camera na escola, e Chico saía pela cidade fotografando. Em Lisboa, passou a dividir o apartamento com o amigo Pedro Pinheiro Guimarães, que tinha máquina – que, por sua vez, a dividia com ele. Um fazia um filme, o outro outro, e assim por diante. Funcionava, mas ele tinha vontade de fazer vôos mais altos, e assim resolveu procurar Claudio Mello e Souza, diretor da sucursal da Manchete na cidade.
-- O Claudio era muito amigo do meu pai, -- conta. – Os dois eram apaixonados por Eça de Queiroz, chegavam a trocar correspondência sobre o Eça, e fui muito bem recebido por ele.
O jovem fotógrafo foi contratado, junto com o amigo Pedro. Pouco depois, Claudio assumiu a sucursal de Paris, e convidou-os a ir junto.
-- A sucursal de Paris era mais estruturada do que a de Lisboa e tinha um chefe de fotografia. O Cláudio disse que a última palavra sobre a nossa contratação seria dele, a quem ficaríamos subordinados caso fossemos aceitos. Naquela época eu tinha um irmão que morava em Paris, tinha vários amigos em Paris, e todos conheciam o Aléssio Andrade, chefe de fotografia da sucursal da Manchete. Quando souberam que seriamos julgados por ele, foram unânimes: “Nem se dêem ao trabalho de vir, ele vai rasgar os contatos, vai jogar os negativos para o alto, é super exigente!”.
Mesmo assim, Chico e Pedro resolveram tentar a sorte. Levaram cópias dos seus trabalhos e foram enfrentar a fera – que, de cara, descartou todo o material.
-- Ele não queria ver cópias das fotos; queria ver os contatos, para saber o que nós víamos, -- lembra Chico. -- Fomos aceitos, com uma recomendação: ir aos museus nas horas vagas. Eu pensei, esse cara é doido, quero ser fotógrafo e ele me manda para museu! Mas é lógico que essa era a melhor recomendação que ele podia nos dar. Assim treinamos o olho, aprendemos luz, composição, tudo. Até hoje tenho muita influência do Aléssio. Saíamos muito juntos, e há livros dele em que eu estou ao lado, ou entro na foto sem querer.
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Foi em Paris que Chico e Tintim, que já se conheciam do Rio, acabaram se casando. Mas o que era divertido para um rapaz solteiro acabou se revelando cansativo para um jovem pai de família. Um dia, os dois decidiram fazer as malas e ir para a Indonésia. Estavam com tudo pronto quando Portugal e Indonésia romperam relações diplomáticas por causa da invasão de Timor Leste. O jeito foi voltar para o Brasil.
Bem que Chico tentou continuar na fotografia, mas nenhum dos trabalhos que aparecia o atraía. Tentou jornais e revistas, tentou fotografia de moda, mas nada. Quando viu, estava trabalhando na empresa de perfis de alumínio do irmão. Outro emprego para o qual não era talhado.
-- Um dia cheguei em casa e disse para Tintim: vou largar o emprego. Achei que ela ia reclamar mas, pelo contrário, me deu a maior força.
E aí aconteceu aquela famosa partida de pôquer com os amigos Ricardo (falecido há dois anos) e Priscilla. O momento, por acaso, revelou-se ideal:
-- Havia uma geração inteira começando junto, -- lembra ele. – Era gente de música, de poesia, de teatro. E havia psicólogos, publicitários, jonalistas... Os clientes eram amigos entre si. Além disso, o Guimas era bem pequenininho. Não que seja muito grande hoje, mas na época era ainda menor. Isso estimulava o clima de camaradagem. Nós tínhamos um painel de cortiça onde as pessoas deixavam recado umas para as outras: “Me liga”, “Me encontra aqui às nove” e assim por diante.
Os filhos dos amigos que moravam perto passaram a ver o restaurante como uma extensão de casa. Os próprios pais diziam que, qualquer problema, era só correr para o Guimas. Com o tempo as crianças cresceram, e já começam a trazer os filhos para almoçar, reforçando a tradição familiar.
A atriz Cissa Guimarães é uma das habituées da casa, que freqüenta desde sempre. Atualmente com peça no Shopping da Gávea, ali do lado, ela pode ser encontrada no restaurante noite sim e outra também:
-- Conheci o Chico quando dançava na Enid Sauer – lembra Cissa. – Eu devia ter uns 12, 13 anos. De repente olhei para a coxia, e lá estava um fotógrafo absolutamente deslumbrante, louro, de olhos verdes... Não acertei mais um passo depois disso! Com todo o respeito pela Tintim, foi paixão à primeira vista. Como tantos amores, aliás, esse também começou com paixão, e acabou virando família: o Guimas é mais do que meu restaurante, é quintal da minha casa, é minha família, é um lugar onde me sinto protegida e bem-tratada. Nem precisava ter uma comida tão boa, mas tem. Quem pode querer mais?
Outra que fala em família quando trata do Guimas é a estilista Isabela Capeto. Chico e a mulher Tintim, são vizinhos dos pais de Isabela, que acompanhou o crescimento das filhas do casal, Domingas, Luiza e Isabel, desde pequenininhas. Hoje orgulha-se quando vê Domingas, a mais velha, trabalhando no restaurante.
-- Sou super fã da casa, dos garçons, do Chico, da Domingas – diz Isabela. – O meu primeiro ateliê ficava muito perto, e fazíamos nossas reuniões na varanda do Guimas. Existe lugar mais agradável? Este ano mesmo comemoramos o aniversário do meu marido lá. A nossa vida continua passando pelo Guimas.
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Chico e Tintim sempre gostaram de receber amigos. Mesmo quando moravam em Paris, e o dinheiro era curto, viviam inventando festas e jantares, para atual perplexidade de Chico, incapaz de perceber como aquela vida era possível com tão parcos recursos. Natural, portanto, que a hospitalidade se transferisse para o restaurante, que passou a funcionar como uma extensão da sala de casa.
-- Todo mundo me perguntava por que eu não abria um restaurante. É uma pergunta normal, sempre que alguém cozinha os outros propõem a abertura de um restaurante, acham que o restaurante é só o salão, só o glamour, esquecem que tem a parte de trás. Eu também esqueci, é claro, depois é que aprendi. Aqui é a festa, mas o pulmão é lá atrás.
Muitas pessoas que cozinham bem acabam mesmo abrindo restaurantes – para fechá-los pouco tempo depois. A simpática casa de Chico e Ricardo foi uma das poucas exceções à regra. O clima de camaradagem que sempre distinguiu o Guimas é certamente uma das razões da sua longevidade, mas aquele primeiro cardápio também foi muito importante.
-- Eu falei que havia um porquê meio matreiro nos nossos pratos. Claro que eu me irritava muito com o cardápio pesado e sem imaginação que encontrava nos restaurantes da época, mas a principal razão que nos levou a apresentar tantas novidades é que assim não era possível comparar nada. Ninguém podia comparar nosso filé boursin com o dos outros, porque não havia o dos outros... A truta com espinafre, o pato da fazenda, esses pratos que até hoje estão no cardápio, eram literalmente incomparáveis, pelo simples motivo que só nós os faziamos.
Outro truque que deu certo: a toalha de papel com o potinho de lápis de cera, sucesso até hoje com crianças e pais de crianças. A idéia, que é praticamente marca registrada do Guimas, antecede o restaurante. Um dos irmãos de Chico mora em Nova York, e uma vez, ao visitá-lo, ele ficou impressionado ao ver como Domingas, ainda pequenina, se distraía com a toalha e os lápis de um bar que freqüentavam.
Quando o projeto do Guimas começou a tomar corpo, e Chico e Ricardo começaram a estudar o “business restaurante”, descobriram que toalhas e guardanapos eram itens extremamente caros na equação. Ao optarem pelas toalhas de papel, o potinho de lápis de cera foi imediatamente lembrado. Está lá até hoje, assim como estão vários desenhos feitos por clientes, crianças e adultos, devidamente emoldurados. Outros, incontáveis, estão guardados, mas já serviram para decorar o Guimas do Fashion Mall e para uma exposição no Barra Shopping.
Frequentador assíduo, o poeta Geraldinho Carneiro tem uma teoria para explicar o sucesso e a longevidade do restaurante:
-- O Chico, que é um carioca falsificado, porque é português, conseguiu fazer, no Rio, um perfeito bistrô parisiense, -- diz ele. – Você passa pela maluquice do Baixo Gávea, entra numa ruazinha pequena e pronto, está numa sucursal da Brasserie Lipp. Tudo é muito simpático no Guimas, a começar pelo Chico e pela Tintim, que são uns encantos de pessoas, e passando pelo ambiente da casa, com os desenhos emoldurados. Quantos restaurantes você conhece que tem Angelo de Aquino na parede? Em suma, eu diria que o segredo do Guimas é que ele é um bistrôzinho francês, feito por um português, com uma adorável mistura carioca. Um dos mais bem-sucedidos exemplos de miscigenação tropical que eu conheço.
Verdade que, no começo, o bistrôzinho estava mais para botequim. Tinha salaminho e queijo Palmira mas, além disso, os amigos da casa levaram para lá um freezer, que encheram de garrafas de cerveja. Às vezes, durante à tarde, Chico sentava-se de frente para o freezer e punha as mãos na cabeça:
-- Meu Deus, o que é que eu vou fazer com isso?! Onde é que eu me meti?!
O contrato feito com o proprietário das três lojas que compõem o Guimas foi assinado prevendo o pagamento do ponto em seis meses. Se tudo desse certo, ao cabo do período Chico e Ricardo pagariam o valor estipulado; caso contrário, devolveriam as lojas, dando como pagamento as melhorias que haviam feito. Pois em dois meses o ponto estava devidamente quitado.
Cinco anos depois, o restaurante ganhou uma filial no Fashion Mall, que funcionou durante ótimos 14 anos até ser derrotada pela guerra do tráfico entre Rocinha e Vidigal, que afastou o público de São Conrado. Chico lembra-se dela com saudades. Ele sempre quis ter um bar, e lá conseguiu realizar o seu sonho.
-- O meu bar ideal é o P.J. Clarke’s, em Nova Iorque. O filho do dono viveu no Brasil quando era menino, fala até um pouco de português, e ficamos amigos, -- conta. – Quando abrimos o Guimas em São Conrado, fui lá, fotografei tudo e aproveitei vários detalhes no nosso bar. Ficou tão bom que volta e meia as pessoas nem queriam ir para as mesas, pediam para comer lá mesmo.
O Guimas teve filiais também no Barra Shopping e na Paul Redfern, mas essas foram experiências que não deram certo. A do Barra Shopping foi vítima de uma concepção errada de praça de alimentação que levou pelo ralo vários estabelecimentos; a da Paul Redfern nasceu condenada, porque Chico desprezou a sabedoria popular que marca certos pontos como “caveiras de burro”, lugares onde nada dá certo.
-- É incrível, mas caveira de burro existe mesmo, -- constata Chico. – Eu não acreditava nisso, mas é verdade. Aquele Guimas era ótimo, perfeitinho, mas as pessoas nem se lembravam de que existia...
A moral da história é que, nos planos para os próximos 30 anos, não há nenhum restaurante novo.
-- Nossos copos não são de cristal, nossas toalhas são de papel, mas esse Guiminhas da Gávea vai bem, e é muito pé quente.
(O Globo, Rio, 18.12.2011)