Nunca houve tempo igual
As geladeiras eram importadas e os ventiladores um perigo para as crianças, com suas pás de metal desprotegidas. Comia-se manteiga sem culpa no café da manhã, almoçava-se em casa, jantava-se lautamente. Fotógrafos ganhavam a vida fazendo 3 x 4 na praça ou surpreendendo casais e famílias que passeavam na rua: os instantâneos ficavam prontos rapidinho, em menos de uma semana. As contas eram pagas em dinheiro vivo. O correio trazia cartas e telegramas. As cartas aéreas eram escritas em papel fino, para não ficarem pesadas e, por conseguinte, caras. Os comunicados fúnebres chegavam em envelopes com tarjas pretas, que lhes davam gravidade e os destacavam do resto da correspondência. A televisão era um aparelho de luxo, que apresentava programação local por algumas horas – e, mesmo assim, em pouquíssimos estados. Para o grande público, as notícias vinham pelo rádio e pelos jornais, que traziam informações de todo o tipo, das grandes manchetes ao resultado dos concursos públicos. O noticiário em imagens garantia a circulação das revistas semanais e a popularidade dos cine jornais, projetados nas sessões de cinema antes dos longa-metragens. Mães zelosas guardavam revistas para os trabalhos escolares dos filhos e, em toda casa com um mínimo de recursos, coleções de livros de referência para jovens tinham destaque nas estantes. Havia ótimo mercado para as enciclopédias, vendidas de porta em porta, em suaves prestações mensais. A palavra “tecnologia”, apesar de inventada em 1829, não fazia parte do vocabulário geral.
E, no entanto, a maior revolução jamais vivida pela humanidade estava em curso. Nada seria como antes, o que não é dizer pouco, ainda que a frase tenha se tornado banal: apenas nos dois séculos precedentes, com a Revolução Industrial, o mundo passou por mais transformações do que em todos os milhares de anos anteriores de História registrada. Já sabíamos que tudo pode mudar num piscar de olhos; só não sabíamos ainda que piscávamos tão depressa.
O Univac, primeiro computador comercial, fabricado, digamos, em massa – 46 unidades produzidas – foi lançado em março de 1951. Pesava 13 toneladas, tinha 5.200 válvulas e consumia mais energia elétrica do que um quarteirão bem iluminado. Por jurássicos que esses números nos pareçam hoje, o Univac representava um enorme avanço em relação às máquinas anteriormente desenvolvidas, capazes de lidar apenas com números e frequentemente chamadas, por justa causa, de “calculadoras”: projetado para trabalhar com informação numérica e de texto, ele marcou o início da Era da Computação de forma dramática.
Nas apertadíssimas eleições americanas realizadas no ano seguinte ao seu lançamento, o Univac previu a vitória de Eisenhower, quando todos os institutos de pesquisa apontavam Adlai Stevenson como vencedor. O pobre computador recém-nascidos foi desmoralizado pela televisão, que chegou a fazer um filmete troçando dos seus cálculos aparentemente absurdos, para pouco depois passar à categoria de oráculo sem igual. Essa máquina venerável e suas sucessoras prestaram bons serviços até a década de 70, quando finalmente se aposentaram com louvor.
Em meros 50 anos, a tecnologia alterou radicalmente o modo como vivemos. Nenhum aspecto do cotidiano ficou intocado, nenhuma pessoa escapou à sua influência. Mesmo as tribos mais remotas sentem de alguma forma o impacto da globalização. Se este impacto é para melhor ou pior é discussão apenas filosófica. Não há volta no caminho, porque não podemos ignorar hoje o que antes não tínhamos como saber.
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Quem não estava no Maracanã no dia 16 de julho de 1950 estava, provavelmente, ouvindo rádio. Mas esqueçam a imagem clássica do torcedor de ouvido colado ao radinho de pilha: o transistor ainda não entrara em cena, e os rádios eram, em sua maioria, objetos de mesa. As válvulas impediam a miniaturização, fazendo com que mesmo os portáteis existentes fossem pesados e desajeitados.
A triste notícia da derrota da seleção brasileira para o Uruguai chegou ao povo entre chiados e ruídos. Mas este som quase inaudível estava por um fio – e por algumas baterias, e alguns componentes que fizeram grande diferença.
Quando o Brasil ganhou sua primeira Copa, em 1958, o rádio de bolso já existia há um ano. Era um lançamento da empresa que viria a se chamar Sony e, embora a concorrência observasse, com desdém, que os seus vendedores usavam camisas com bolsos desproporcionalmente grandes, o modelo “pegou” e popularizou-se num átimo. Ele é, por sinal, o aparelho de comunicação mais bem sucedido de todos os tempos: supõe-se que existam no mundo cerca de sete bilhões de unidades.
Na Copa de 2010, torcedores do mundo inteiro estarão com aparelhos igualmente pequenos em mãos -- telefones celulares poderosos, capazes de se conectar à internet, de desempenhar uma infinidade de funções e de transmitir, ao vivo, as imagens perfeitas da TV digital.
Poucas coisas resumem tão bem o vertiginoso salto da tecnologia neste último meio século quanto a comparação entre os gadgets dos torcedores das Copas da Suécia e da África do Sul. Tão próximos no tempo que, em muitos casos, são a mesma pessoa, apenas 50 anos mais velha, eles estão a tal distância tecnológica uns dos outros que, a rigor, poderiam viver em planetas diferentes. E, considerando o quanto a Terra mudou, vivem mesmo.
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O transistor fez sua estréia no universo dos bens de consumo nos radinhos de bolso, que hoje nos parecem tão humildes e limitados; mas ele já funcionava em computadores, substituindo o arcaico sistema de válvulas, e foi etapa fundamental para o desenvolvimento do microchip, pequeno semicondutor que transmite informações num circuito integrado, apresentado em julho de 1959 por Bob Noyce, mais tarde um dos fundadores da Intel. Como acontece com freqüência quando o mundo está pronto para um salto dessas dimensões, havia várias idéias convergentes no ar: um ano antes, Jack Kilby havia proposto um modelo semelhante de circuito, mas o seu usava um elemento chamado germânio, em vez do silício escolhido por Noyce. No fim, as companhias para as quais ambos trabalhavam uniram forças e patentes, e estabeleceram o padrão para a indústria.
O resto é História. O microchip é, sem dúvida, uma das maiores invenções humanas, se não a maior. Já seria um prodígio pelo fato de, em todo o universo, não haver nada com semelhante densidade de energia; mas nenhum outro invento mudou tanto o mundo, e em tão pouco tempo. Vivemos cercados de microchips. Deles dependem os veículos que nos transportam, as nossas transações comerciais, as informações que recebemos, os alimentos que nos sustentam e, muitas vezes, até o ar que respiramos. Eles estão em equipamentos essenciais à nossa sobrevivência, como os marcapassos, e nas mais inúteis quinquilharias de camelô; nas ferramentas com que trabalhamos, em etiquetas de lojas, em brinquedos e até mesmo em animais, como implantes para identifica-los.
Escrevo no meu home-office, titulo pomposo para a biblioteca aqui de casa. Além do computador, há microchips no telefone de linha, nos dois celulares, no ar condicionado e em seu controle remoto, num reloginho que me informa as horas e a temperatura ambiente, nas duas câmeras fotográficas. E isso sem abrir as gavetas, verdadeiros ninhos deles, alojados que estão numa variedade de badulaques, do iPod a um cartão cafoninha de Boas Festas que toca Jingle Bells quando é aberto, e que não tive coragem de jogar fora porque, tendo acompanhado de perto a evolução da tecnologia, guardo ainda certo espanto diante de banalização tão radical.
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Essa espetacular universalização do circuito integrado só foi possível graças a uma revolução paralela, menos comentada mas não menos importante: a do disco rígido, outro respeitável senhor que completou 50 anos recentemente. Lançado pela IBM, o Ramac (de ‘Random Access Method of Accounting and Control”) era o par perfeito para os “cérebros eletrônicos”. Tinha o tamanho de duas geladeiras, pesava uma tonelada, era cheio de não-me-toques e vinha com a mirabolante capacidade de armazenar 5 Mb, ao custo de US$ 10 mil por Megabyte. Como lembrara a Rand, não era equipamento para ser adotado pelos lares comuns.
Mas, já em 1980, notáveis progressos se registravam na área. A IBM apresentou o primeiro disco rígido de 1 Gigabyte, que ocupava o espaço de uma única geladeira e pesava só meia tonelada. E, em outro front, a Seagate lançava o primeiro disco rígido de 5”1/2, com capacidade 5 Mb, ao modesto preço de US$ 1.500. Em 1981, cheia de otimismo, a revista “Creative Computer” previu que, em futuro próximo, o custo de 128K de memória cairia abaixo dos US$ 100.
Seria cômico se não fosse assombroso. Tendo tal custo por base, há menos de 20 anos 256 Mb saíam a US$ 200 mil; em 2010, pen drives de 2 Gb são distribuídos como brindes e saem quase de graça. Os de 256 Mb nem são mais fabricados. O cartão de memória do meu celular, por exemplo, da metade do tamanho de uma unha, tem capacidade para 16 Gb.
Em suma: em cinco décadas, o custo de armazenagem por Megabyte passou de US$ 10 mil a uma fração de centavo absolutamente irrelevante. Para mim, que comprei um HD de 20 Mb em 1987 a US$ 750, há poucos milagres iguais ao do barateamento e da miniaturização da armazenagem, que nos permitiram vôos nunca antes imaginados. Na sua esteira vieram as interfaces gráficas, os notebooks miúdos que não deixam nada a desejar aos velhos mainframes, os iPods, os games, a fotografia digital... É uma gama infinita de aplicações, que pavimentou o caminho para A Invenção Que Mudou Tudo.
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-- Como é que conseguíamos viver antes da internet?!
Como todo mundo, eu também perdi a conta do número de vezes em que ouvi ou formulei essa pergunta. E, embora tendo nascido bem antes dos anos 80, quando ela começou a se difundir, esqueci tudo. Recompor o mundo não-conectado é um exercício de imaginação impossível, que sempre deixa alguma coisa de fora.
Como encontravamos telefones e endereços? Como sabíamos quais filmes estavam em cartaz? Como descobríamos os horários dos vôo, a temperatura em Lisboa, o valor da rúpia? Onde estavam informações como a data de estréia de Casablanca, a idade da Brigitte Bardot, os recordes dos 50 metros de nado de peito? A quem recorríamos para saber como se tiram manchas? Como conseguíamos esperar meses por uma carta? Como dependíamos apenas dos discos que estavam nas lojas? Como fazíamos quando precisávamos da letra de uma música ou do trecho de um filme? Como elaborávamos o trajeto de casa para uma rua que não conhecíamos?
A resposta para essas questões, e tantas e tantas como elas, torna-se cada vez mais remota. É provável que, em breve, tornem-se tema de trabalho de escola e objeto de arqueologia urbana. E poderiam, desde já, virar um joguinho engraçado:
-- Quem sabe como...?
O fato é que, de 50 anos para cá, passamos a ser todos muito bem informados. Antigamente, a medida da curiosidade de uma criança restringia-se ao que sabiam os adultos à sua volta, aos eventuais livros de casa ou de uma possível biblioteca nas proximidades. Quem nascia longe dos grandes centros estava preso às limitações locais; geografia era destino.
Não mais. Com um pouco de curiosidade e uma conexão à internet, o velho ditado italiano passa, enfim, à realidade: tutto il mondo è paese. O mundo é uma aldeia.
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Clico na barra do Word, que me informa que, até aqui, escrevi exatas 1.887 palavras, 11.380 caracteres. A tarefa está quase concluída, não há mais espaço. Clico novamente, desta vez no ícone do player, e a voz de Cesária Évora enche o escritório.
Os gatos espetam as orelhas, espreguiçam, ouvem por alguns instantes e voltam a dormir. E eu penso, pela enésima vez, em como a tecnologia nos transformou a todos em privilegiados. Houve um tempo em que só os reis podiam ouvir música quando bem entendessem -- e, ainda assim, ficavam limitados à orquestra da corte. Em breve, vou desligar o ar, por o computador em modo de espera e apagar a luz.
Agradeço à minha boa estrela, que me fez nascer na época certa.
(Do livro "50 anos construindo o futuro", publicado nos 50 anos da CBS Previdência)