03/07/2005



Apaixonado por
Cuba -- ao longe


Vivendo no Canadá e escrevendo em inglês, o cubano José Latour traz da terra distante o cenário e a inspiração para seus romances

Uma das estrelas da III Festa Literária de Paraty é José Latour, autor de um dos melhores policiais lançados no Brasil este ano, "Mundos sujos". Ele se apresenta sábado, conversando sobre literatura policial com Luiz Alfredo Garcia-Roza e Marcello Fois. Nascido em Havana há 65 anos, vivendo há três em Toronto com a mulher, os filhos e a nora, Latour deve o sucesso deste seu primeiro romance escrito em inglês a um mix particularmente interessante de ingredientes, em que a uma trama original e movimentada junta-se a observação sensível de dois universos opostos. De um lado, a Havana miserável dos cubanos comuns, sem amigos poderosos, sem comida, sem fé no futuro; de outro, a Miami sem lei e sem privações, em que o consumismo alucinado tenta se impor como uma espécie de felicidade.

O autor, que já lançou mais um livro em inglês, Havana Best Friends, promete, até o fim do ano, a continuação de "Mundos sujos" -- alegria garantida para quem acompanhou as aventuras do professor Elliot Steil. No forno, tem ainda um ensaio sobre os problemas que seu país enfrentará depois do comunismo, e um romance histórico ambientado na Havana do Século XIX.

José Latour, que não consegue se afastar emocionalmente da Cuba natal, escolheu o Canadá para viver por lhe parecer o melhor dos países que conhece -- uma democracia solidamente estabelecida, onde os direitos humanos são respeitados:

-- Não há nações perfeitas -- disse, por email, para esta entrevista. -- Em toda parte há crime, corrupção e outras doenças sociais. A grande questão é descobrir com quanta imperfeição se pode viver.

Para parte da intelectualidade brasileira, Cuba continua sendo um modelo de independência, um pequeno Davi lutando contra o Golias americano. É possível uma ditadura do bem?

JOSÉ LATOUR: Inúmeros intelectuais mundo afora têm essa visão de Davi e Golias da ilha. O que eles não sabem é que o minúsculo Davi da cena mundial transforma-se num Golias impiedoso nos bastidores, uma criatura que mandou fuzilar milhares de adversários e sentenciou centenas de dissidentes pacíficos a longas penas em prisões infectas, o mais longe possível de onde vivem seus parentes e amigos, pelo "crime" de pedir eleições livres, um sistema político multipartidário, uma imprensa sem censura.

O que me deixa perplexo é que todos esses intelectuais exigem para si mesmos os direitos e liberdades que a ditadura cubana nega ao povo. Eles criticam abertamente seus governos, denunciam abusos de poder e corrupção, participam de movimentos e passeatas contra o governo. Ninguém em Cuba pode fazer nada disso.

Acredito que todos têm direito à sua opinião, mas os princípios são, ou deveriam ser, inflexíveis; de outra forma, passa-se a usar dois pesos e duas medidas. Se você acha que a liberdade de expressão é um direito humano básico e a exige para si mesmo, não deveria apoiar um regime que, em outro país, aprisiona pessoas só porque gostariam de fazer o que você faz.

Uma das grandes ironias da política cubana é que o primeiro homem que pegou em armas para lutar contra a ditadura tornou-se, ele próprio, um ditador em grande estilo. E não, não há ditadura "boa" ou "do bem".

Fala-se muito na excelência dos sistemas de educação e saúde cubanos, mas mesmo eles não se salvam incondicionalmente no seu romance "Mundos sujos". Como é a realidade em Cuba para os cubanos comuns, aqueles que não têm padrinhos políticos?

LATOUR: Alguns adversários do comunismo cubano recusam-se a admitir conquistas, e isso acaba funcionando contra eles. Nenhum governo consegue ser totalmente mau e injusto, ou integralmente bom e correto. O que Cuba conseguiu nos campos da educação e da saúde pública nos últimos 40 anos é o sonho de todo o Terceiro Mundo. Sim, a educação é de uma servidão ideológica chocante, mas nenhuma criança cubana fica sem escola ou professor. Sim, faltam remédios e os hospitais têm carência de tudo, de equipamentos de Raio-X a reagentes químicos para análises clínicas, mas o mais remoto vilarejo cubano conta com um médico que pode chamar uma ambulância e remover seus pacientes para o hospital mais próximo. Oferecer educação e atendimento médico gratuitos a todos os cidadãos é excelente. Privá-los do exercício de seus direitos civis, porém, é altamente perverso, pois os transforma em escravos. Saudáveis e educados, sim, mas escravos.

A percepção que se tem, por livros como "Mundos sujos" ou filmes como "Guantanamera", é que pequenos delitos e roubos na agências governamentais institucionalizam-se num país onde, freqüentemente, não se ganha o suficiente para sobreviver. Esta é a mesma percepção que me dão, aliás, filmes e livros que têm por cenário a antiga União Soviética. É um tipo diferente de roubo daquele que se vê no Brasil, onde a corrupção é generalizada, mas onde roubar da repartição não chega a ser propriamente uma necessidade vital, de modo que você ainda pode se dar ao luxo de ser uma pessoa honesta, se assim o desejar.


LATOUR: Assim como em tantas economias de mercado há homens de negócios que lutam por lucrar cada vez mais, de todas as maneiras possíveis, éticas ou não, na ilha -- dada a indiscutível falência econômica do sistema -- a maioria dos funcionários públicos tenta trabalhar o mínimo e roubar o máximo possível. Este problema atinge hoje tais proporções que a população não percebe mais o roubo de bens do Estado como um crime passível de punição. Médicos, dentistas e enfermeiros roubam remédios, comida e roupa de cama. Operários roubam cimento, madeira e areia. Professores e burocratas roubam papel, canetas e peças de computador. Ladrões de gado abatem entre 20 mil e 30 mil cabeças por ano.

Se todo mundo que rouba ou já roubou alguma coisa fosse para a prisão, provavelmente metade da população estaria encarcerada.

Fiquei muito impressionada com a falta de solidariedade e apoio aos dissidentes cubanos presos por Fidel Castro recentemente. Há alguma explicação racional para isso?

LATOUR: Na minha opinião houve solidariedade e apoio, sim, ainda que não tanto quanto eu teria gostado de ver. Talvez uma das razões para a pouca repercussão deste apoio esteja, justamente, naquela visão de Davi e Golias que discutimos antes, e no papel dos intelectuais de esquerda como formadores de opinião. A outra razão, com certeza, é que a única coisa que realmente funciona bem em Cuba é a propaganda. Assim que os dissidentes foram presos, a máquina entrou em funcionamento, espalhando que eles eram agentes do governo americano. O problema é que algumas pessoas são tão ingênuas que conseguem acreditar numa besteira dessas.


A sociedade cubana que o senhor retrata é um lugar de alta periculosidade para os que insistem em pensar por si mesmos. Mas o outro lado do espelho, ou seja, os cubanos de Miami, também não são pintados com boas tintas em "Mundos sujos". Nenhuma das opções o agrada. O que o senhor acha que vai acontecer em Cuba quando Fidel morrer? Há alguma possibilidade de que, no futuro, olhando para trás, as pessoas sintam saudades dos "bons velhos tempos" do castrismo?

LATOUR: As pessoas não me desagradam. Nem em Cuba, nem nos Estados Unidos, nem em lugar algum. Acredito piamente que, em todos os países, 90% das pessoas são gente direita e trabalhadora. Mas, entre os 10% restantes, encontramos uns tipos realmente asquerosos: políticos com sede de poder, criminosos, ladrões, falsários, torturadores...

Quando nós humanos olhamos para trás, podemos ver cinco mil, dez mil ou mesmo um milhão de anos do passado. Mas, quando tentamos olhar para a frente, ninguém pode prever sequer o que vai acontecer amanhã de manhã.

Estou publicando um breve um ensaio a respeito das questões com que a sociedade cubana vai ter de lidar depois do comunismo, mas não faço idéia de quando isso acontecerá. Acontecerá, porém, seguramente. O sistema está política e moralmente corroído, não funciona. Não funcionou na União Soviética e em nenhum país europeu. A China e o Vietnã estão fazendo progressos econômicos porque nesta área, especificamente, deixaram de ser países comunistas.

Naturalmente, alguns cubanos vão sentir falta do comunismo. Isso ainda acontece na Rússia, onde milhares de cidadãos continuam adorando Stalin. Mas o primeiro governo não comunista de Cuba vai ter que tomar um cuidado enorme em certas áreas, como emprego, educação, saúde pública, impostos e política monetária, por exemplo, para não alienar mais pessoas do que aquelas que inevitavelmente lamentarão os novos tempos.

Por melhor que se desenvolvam a democracia e a economia de mercado numa Cuba pós-comunista, meu palpite é que uns 15% ou 20% da população, sobretudo entre os mais velhos e os menos educados, mais todos aqueles que sempre se deram bem lambendo as botas do ditador, vão sentir muitas saudades dos "bons velhos tempos".

Como o senhor conseguiu sair de Cuba? O senhor pretende voltar a viver lá? Do que sente mais falta?

LATOUR: Tenho a impressão de que certas pessoas ficaram contentes com o fato de eu pedir permissão para viajar com a minha família toda, e instruíram os burocratas nos lugares certos a me deixar sair. De modo que não houve nada aventuroso ou perigoso na minha saída da ilha. Vou decidir se volto ou não quando a ditadura comunista desmoronar. Acho que o que mais falta me faz é a minha cultura, no sentido mais amplo da palavra. Cultura como a mistura de uma infinidade de coisas, não apenas música, literatura ou pintura, mas um camponês cultivando o seu pedacinho de terra, uma mulher bonita a caminho do trabalho, o motorista do ônibus fazendo piadas, o cheiro do pão fresco, e centenas de outras coisas -- sons, vistas, cheiros, gostos. Instruí meu filho e minha filha a espalharem minhas cinzas ao largo de Havana, caso eu morra antes do fim do comunismo.

O senhor continuará a escrever em inglês? É muito difícil escrever numa língua na qual não se cresceu?

LATOUR: Sim, continuarei a escrever em inglês, e sim, é muito difícil fazê-lo! Aprendo novidades a cada dia. Tive que comprar, e consulto constantemente, o Chicago Manual of Style, o último Roget's Thesaurus, o Webster. Felizmente a gramática e a sintaxe do inglês não são tão complicadas quanto as do espanhol.

O senhor está trabalhando atualmente em algum livro novo? Ele será também ambientado em Cuba?

LATOUR: Agora em novembro sai um novo romance meu nos Estados Unidos, uma continuação de "Mundos sujos". Talvez seja publicado também no Brasil, vamos ver. Em breve publicarei o ensaio sobre Cuba de que falei antes; e estou escrevendo um novo romance, ambientado na Cuba do Século XIX. É o meu primeiro romance histórico, e estou muito entusiasmado com ele. Ah, esquece: eu sempre fico entusiasmado com o novo livro que estou escrevendo.

(O Globo, Segundo Caderno, 3.7.2005)

07/06/2005

Onde está a verdade e onde está a mentira?

Arnaldo Jabor


A mentira virou verdade? Diante dos vídeos e telefonemas gravados os acusados batem no peito e berram: ?É mentira!?. Parecem existir dois brasis: um Brasil roído por ratos políticos e um outro Brasil povoado de anjos e ?puros?. E o fascinante é que são os mesmos homens. O povo está diante de um milenar problema fisiológico (ups!) ? isto é, filosófico: o que é a verdade? O que é a mentira? A verdade são os crimes evidentes que a PF descobre ou os desmentidos dos que os cometeram? No Brasil, acaba sendo o discurso do poder vigente. A anomalia do Judiciário protege a ?verdade/mentira? (no Brasil formam uma unidade dialética), com o lema de que ?o réu é inocente até que se prove o contrário?. Tudo bem, só que aqui nada prova nada nunca: nem o cheque assinado na Suíça, nem a conta nas Ilhas Jersey ou a evidência do roubo no TRT paulista (lembram?).

Nossas ?verdades? institucionais foram construídas por 500 anos de mentiras. Portanto, virou uma razão de Estado a proteção à mentira brasileira inventada pela secular escrotidão portuguesa, que criou o DNA dos canalhas que vemos hoje na TV negando tudo. Se a verdade aparecesse em sua plenitude, nossas instituições cairiam ao chão. Mas tudo está ficando tão claro, insuportável, que, talvez, tenhamos de correr esse risco de quebra, apesar do perigo de que a direita virá correndo restabelecer a paz ?da verdade das mentiras?. Por isso, o governo acha que é necessário proteger as mentiras para que a falsa verdade do país permaneça.

O presidente entra dizendo que vai usar a verdade para combater a mentira e logo, logo, está usando a mentira para fazer valer sua nova ?verdade?.

Lula diz: ?Eu dou cheque em branco ao Roberto Jefferson?. Sabemos que é mentira, pois Lula pensa: ?A verdade não pode ser dita; preciso da mentira para que o sistema não caia, para que o PT não se esfacele e para que eu me reeleja. Eu minto em nome de uma verdade maior!? FHC usava os ladrões também, mas lhes impunha sutis limites; o PT despreza a democracia ?burguesa? e abriu a porteira com desdém pelos ladrões e ficou prisioneiro deles, sem contar os neoladrões petistas.

Lula mente para si mesmo, achando que só defende a ?causa do povo? ? que, aliás, é um pouco ?verdade?, pois está defendendo sua própria causa, porque, afinal, ele é ?do povo?, ou melhor, ?era?, antes de subir na vida, ostentando sua saga de vendedor de picolé em Santos até beijar deslumbrado a mão da imperatriz do Japão.

Vejamos outro símbolo do momento: as lágrimas de Suplicy no Senado, assinando a CPI. Foram lágrimas de crocodilo ou lágrimas de verdade? Par ou ímpar? Bem... começou como mentira, passando a perna nos companheiros de partido que iam assinar. Foi oportunista ou sincero? Talvez as duas coisas? Agora, faturando o desprestígio do governo, parece verdadeiro e está eufórico, fazendo cooper .

E o Genoino? Quando acusa o FHC pelo caso da pasta rosa, sabe que está mentindo, que aquilo foi uma chantagem, mas acredita na mentira ?de esquerda?.

E as fazendas imaginárias do Jucá, que continuam produzindo? E os 40 mil caminhões do mogno arrancado da Amazônia com papéis falsos? E o caso do IRB, com o ex-presidente Lídio Duarte, herói por três dias, desafiador dos corruptos que voltou atrás no depoimento? Qual o verdadeiro Lídio, o corajoso ou o covarde? E o magnífico, o insuperável Mauricio Marinho, dos Correios, que confessou seus roubos para o vídeo? Que prazer perverso deve ter tido naquele orgasmo de verdades, revelando suas mentiras?

E o José Dirceu? Qual o verdadeiro Dirceu? O velho bolchevista que se disfarçava em nome do socialismo ou o Dirceu ?democrático?? Dirceu é pelo Palocci ou não? Dirceu viveu clandestino dentro da própria vida, com operação plástica em Cuba, durante quatro anos de casamento. Qual era o verdadeiro? O falso marido ou o revolucionário em campanha?

O próprio Dirceu talvez não saiba. Para os comunas clássicos, a vida real não é verdadeira. Sua missão é algures, mais além da vida ?burguesa?. Pensam: ?A vida como a conhecemos é uma mentira; logo, a verdade está onde ela não está, além dessa realidade careta, feita de esposa, filhos, casa. A verdade é algo que não existe ainda e que nós, até mentindo, poderemos um dia atingir?.

E o assassinato de Celso Daniel ? óbvio que ulula (não o Lula), ?ulula? à nossa frente pela trapalhada ridícula que foi, visível a olho nu ? que foi logo abafado para que a verdade do que aconteceu não atrapalhasse a verdade do que ainda não aconteceu e que será, um dia, a ?luminosa? apoteose do PT, salvando a pátria dos idiotas que acreditam na mentira do tempo presente e que não sabem sonhar com a utopia do operário-Cristo subindo ao céus?

E o meu ídolo, meu megastar , o fascinante Roberto Jefferson, o Pavarotti do PTB? Onde está sua verdade? Está no elefante do passado, quando comia na mão do Collor, ou estará no Jefferson de hoje, de barriga operada, magro, cantando ópera para o Lula ? Onde estará esse homem impalpável? Está no ?rolha de poço? ou no Fred Astaire? Aliás, há algo em comum entre a operação plástica de Dirceu e a de Jefferson: ambos se esconderam dos outros e de si mesmos. Os dois queriam ocultar o passado: um revolucionário e o outro, digamos, patético, do ?Povo na TV?. Jefferson fez uma espécie de autocrítica na imprensa: ?Eu era brutal, dava tiro; depois me curei, emagreci e hoje canto óperas!?. Quando virá a autocrítica de Dirceu? Jefferson e Dirceu também são ubíquos: os dois estão em toda parte. Não há um escaninho do Executivo em que Dirceu não se meta e não há uma estatal na qual Jefferson não tenha cumbuca. E os dois lutam contra a CPI; um não quer a CPI para que a verdade ?revolucionária? não sucumba; e o Jefferson, para que não se descubra que continua voraz, ?comendo? de tudo, apesar da cirurgia do estômago. Dirceu engordou ? era um gato nas passeatas de 67 ? e Jefferson emagreceu, mas continuou um gato.

E nós, uns patos.


O Globo, Segundo Caderno, 7.6.2005)