Deu no The New York Times
Merval Pereira
O correspondente do "New York Times" Larry Rohter não tirou do vazio o tema de sua reportagem polêmica sobre o hábito de bebericar do presidente Lula. É a mais pura verdade e há muito tempo circulam boatos, especialmente em Brasília, de que o presidente Lula anda exagerando na bebida, e este é um assunto recorrente nas conversas entre políticos e empresários.
É verdade, também, que o operário Lula habituou-se a beber conhaque nas madrugadas frias do ABC paulista. Mas nada disso forma um quadro de "preocupação nacional" que bote em dúvida a capacidade de Lula governar.
A reportagem dificilmente seria considerada caluniosa, pois apenas relata impressões e declarações de políticos e jornalistas, uns mais, outros menos confiáveis, já publicados anteriormente em jornais brasileiros. Todos se referindo a supostas situações não comprovadas.
Rohter teve o cuidado de botar na reportagem declarações de representantes do governo e do jornalista Ali Kamel, aqui no GLOBO, refutando as insinuações de que Lula anda bebendo demais. Trata-se do que, em gíria jornalística, chamamos de uma "recortagem", uma reportagem escrita com uma seleção de declarações e notas publicadas em diversos jornais e revistas.
A "recortagem" do "The New York Times" não é caluniosa, é simplesmente irresponsável, pois se baseia em boatos e fofocas políticas, mais parece uma daquelas reportagens de revistas sensacionalistas com fofocas sobre artistas que invariavelmente resultam em processos milionários.
O que espanta na matéria de Rohter é ela ter sido publicada pelo "The New York Times", tido como um paradigma da imprensa mundial pela seriedade com que selecionava ?todas as notícias que merecem ser publicadas?, como diz seu pretensioso slogan.
Esta, certamente, não era uma notícia que merecesse ser publicada pelo "Times". Se saísse num tablóide popular, não provocaria qualquer estrago na imagem pública do Brasil nem seria de surpreender. Mas, depois do caso Jason Blair, o mentiroso que inventou várias reportagens e acabou provocando um terremoto no até então mais respeitável jornal americano, era de se supor que o ?The New York Times? tivesse montado um esquema de filtragem que impedisse uma irresponsabilidade dessas de ser publicada.
Pelo jeito, o ombudsman, figura criada depois do escândalo para fazer a autocrítica do jornal e servir de alerta interno, vai ter muito trabalho. O mais grave é a edição, que demonstra que o corpo do jornal, e não apenas seu correspondente no Rio de Janeiro, tem culpa na divulgação de boatos e fofocas atingindo o presidente.
A foto publicada para ilustrar a reportagem mostra o presidente Lula com um chapéu de tirolês levantando um copo de chope na Ocktoberfest em Blumenau, Santa Catarina. Ora, se o presidente estivesse em outro lugar, seria inusitado o chapéu e a caneca de chope. Mas, na festa da cerveja?
Ilustrar uma reportagem sobre o suposto hábito de beber além da conta do presidente Lula com uma foto dessas, ou é desinformação completa ou é má-fé.
Eu já participei de vários jantares e almoços em que o presidente Lula esteve presente, e já o vi beber diversos tipos de bebida, inclusive "bebidas fortes" como cachaça. Mas nunca o vi bêbado, e nada indica nos seus atos que esse gosto pela bebida seja um empecilho à sua atuação na Presidência. Nunca também ouvi um relato de primeira mão de alguém que o tenha visto bêbado.
O hábito de fazer improvisos, criticado por muitos, inclusive por mim, nada tem a ver com a bebida, e não tenho notícia de que alguma vez Lula tenha errado num improviso por ter bebido demais. Pode ser inadequado para um presidente dizer a um grupo de políticos que acordou "invocado" e resolveu telefonar para o Bush. Mas isso nada tem a ver com a bebida, pois naquela noite, segundo os relatos, o presidente bebeu apenas uma dose de uísque.
Não me lembro de jornais sérios, como o "The New York Times", terem publicado algum tipo de boato envolvendo o presidente Bush e bebidas. Como se sabe, o atual presidente americano se tratou de alcoolismo, e ele mesmo se encarrega de fazer a apologia de sua vitória sobre o vício, declarando-a uma obra divina.
O ex-primeiro ministro português Mario Soares conta uma história que o impressionou negativamente, e o fazia temer a guerra com o Iraque, que acabou acontecendo. Segundo o relato de Mario Soares, ao receber um enviado do Papa com um apelo para que não invadisse o Iraque, Bush teria feito um resumo de sua vida, contando que fora alcoólatra e drogado. E encerrou a conversa com a seguinte argumentação: "O senhor acha que eu estaria aqui hoje se não fosse vontade de Deus?"
Relato semelhante está no livro de um ex-assessor de Bush, David Frum, chamado "O homem certo: a surpreendente Presidência de George W. Bush". Segundo ele, Bush, ao receber um grupo de reverendos protestantes, saiu-se com essa: "Vocês sabem, eu tive um problema com bebida. Eu deveria estar agora em um bar do Texas, e não no Salão Oval. Só existe uma razão para eu estar aqui no Salão Oval e não em um bar: eu encontrei a fé. Eu encontrei Deus. Eu estou aqui pelo poder das preces".
Não me consta que algum jornal sério como o "The New York Times" tenha levantado dúvidas sobre a sanidade do presidente Bush com base nesses e em outros relatos, muito mais confiáveis do que alguns em que se baseou Larry Rohter para escrever sua matéria.
Houve também uma ocasião em que o presidente Bush levou um tombo em sua fazenda no Texas, e boatos sobre uma recaída no vício da bebida circularam o mundo. Não me lembro de que um jornal sério como o "The New York Times" tenha feito alusões a essa suposta recaída.
O fato é que, como disse o porta-voz da Presidência, jornalista André Singer, a reportagem do "The New York Times" beira o jornalismo marrom, e só foi escrita e publicada devido a um preconceito social e político. O correspondente do "The New York Times" deveria ser punido não por ter caluniado o presidente Lula, pois tecnicamente não o fez. Mas por ser irresponsável e preguiçoso.
(O Globo, 11.5.2004)